Sonho,
queda livre
Felipe Rezende
23/11/2022 a 07/01/2023
Release
A partir de 23 de novembro, às 19h, a RV Cultura e Arte apresenta Sonho, queda livre, exposição individual do artista baiano Felipe Rezende, com texto de Catarina Duncan.
A mostra apresenta um apanhado da produção do artista entre 2021 e 2022, em que Felipe aprofunda sua pesquisa relacionada ao universo do trabalho braçal e precarizado, e o impacto dessas atividades extenuantes sobre os corpos. Em obras guiadas por forças conflitantes como desgaste e regeneração, homens em estado de repouso, ferramentas de trabalho lânguidas e vistas do céu ao final do expediente se tornam elementos recorrentes para construir desenhos, pinturas, instalações e vídeos. “Nesses retratos estão pequenas vinganças, de trabalhadores que insistem em cozinhar o galona hora do almoço, quebrar o brinquedo do patrão, arriar a bateria e compartilhar com a paisagem o sonho”, analisa Catarina Duncan.
“A questão do trabalho está diretamente relacionada à questão do descanso – esses gestos tão cotidianos quanto universais se fazem presentes na produção de Felipe Rezende. Ao observarmos suas obras, vemos trabalhadores, humanos e não humanos, em estado de suspensão, seus corpos e estruturas levitam, derretem, se rompem e adormecem, afirmando o direito ao tempo, ao ócio e ao sonho", completa a curadora no texto que acompanha o projeto.
Entre os trabalhos incluídos na exposição está a série Tempestade, bonança, tempestade, um grupo de oito pinturas em óleo sobre lona locomotiva. Nestas obras, Felipe propõe um conjunto de fabulações sobre o intervalo entre jornadas de trabalho no campo, partindo de experiências pessoais — decorridas principalmente na cidade de Barreiras e adjacências — para se debruçar sobre o potencial delirioso dos momentos de pausa entre atividades extenuantes.
“As referências das figuras que abundam em minhas pinturas são sempre retiradas do meu entorno, da observação, de experiências como ajudante em diversos serviços no interior da Bahia e permeiam todos as obras, inclusive os trabalhos da série Tempestade, bonança, tempestade. Gosto de pensar que eu estou fundando uma espécie de universo ficcional, como na literatura de García Márquez, Samuel Beckett, Jorge Amado ou como no cinema de Tsai Ming-liang: narrativas que criam geografias em que personagens migram de uma obra para a outra, aparecem e desaparecem, instituindo um tecido social”, comenta o artista.
Sonho, queda livre pode ser visitada até 07 de janeiro de 2023 presencialmente na RV Cultura e Arte - de segunda a sexta, das 10:00 às 18:00 e aos sábados das 10:00 às 14:00; e de forma online, pelo site da galeria (www.rvculturaearte.com).
A partir de 23 de novembro, às 19h, a RV Cultura e Arte apresenta Sonho, queda livre, exposição individual do artista baiano Felipe Rezende, com texto de Catarina Duncan.
A mostra apresenta um apanhado da produção do artista entre 2021 e 2022, em que Felipe aprofunda sua pesquisa relacionada ao universo do trabalho braçal e precarizado, e o impacto dessas atividades extenuantes sobre os corpos. Em obras guiadas por forças conflitantes como desgaste e regeneração, homens em estado de repouso, ferramentas de trabalho lânguidas e vistas do céu ao final do expediente se tornam elementos recorrentes para construir desenhos, pinturas, instalações e vídeos. “Nesses retratos estão pequenas vinganças, de trabalhadores que insistem em cozinhar o galona hora do almoço, quebrar o brinquedo do patrão, arriar a bateria e compartilhar com a paisagem o sonho”, analisa Catarina Duncan.
“A questão do trabalho está diretamente relacionada à questão do descanso – esses gestos tão cotidianos quanto universais se fazem presentes na produção de Felipe Rezende. Ao observarmos suas obras, vemos trabalhadores, humanos e não humanos, em estado de suspensão, seus corpos e estruturas levitam, derretem, se rompem e adormecem, afirmando o direito ao tempo, ao ócio e ao sonho", completa a curadora no texto que acompanha o projeto.
Entre os trabalhos incluídos na exposição está a série Tempestade, bonança, tempestade, um grupo de oito pinturas em óleo sobre lona locomotiva. Nestas obras, Felipe propõe um conjunto de fabulações sobre o intervalo entre jornadas de trabalho no campo, partindo de experiências pessoais — decorridas principalmente na cidade de Barreiras e adjacências — para se debruçar sobre o potencial delirioso dos momentos de pausa entre atividades extenuantes.
“As referências das figuras que abundam em minhas pinturas são sempre retiradas do meu entorno, da observação, de experiências como ajudante em diversos serviços no interior da Bahia e permeiam todos as obras, inclusive os trabalhos da série Tempestade, bonança, tempestade. Gosto de pensar que eu estou fundando uma espécie de universo ficcional, como na literatura de García Márquez, Samuel Beckett, Jorge Amado ou como no cinema de Tsai Ming-liang: narrativas que criam geografias em que personagens migram de uma obra para a outra, aparecem e desaparecem, instituindo um tecido social”, comenta o artista.
Sonho, queda livre pode ser visitada até 07 de janeiro de 2023 presencialmente na RV Cultura e Arte - de segunda a sexta, das 10:00 às 18:00 e aos sábados das 10:00 às 14:00; e de forma online, pelo site da galeria (www.rvculturaearte.com).
Texto crítico
A questão do trabalho está diretamente relacionada à questão do descanso – esses gestos tão cotidianos quanto universais se fazem presentes na produção de Felipe Rezende. Ao observarmos suas obras, vemos trabalhadores, humanos e não humanos, em estado de suspensão, seus corpos e estruturas levitam, derretem, se rompem e adormecem, afirmando o direito ao tempo, ao ócio e ao sonho.
Em ‘Sonho, queda livre’, conhecemos a partir de pinturas, vídeos, desenhos e esculturas, a vida cotidiana de trabalhadores de Barreiras, oeste da Bahia. Felipe compartilhou jornadas de trabalho com Adriano, Claudio e Marcelo, em serviços para mineradoras, construção civil, entrega ou agricultura. Diante da falta de perspectiva na prática artística, Felipe trabalhou como ajudante de obra lado a lado com os amigos, aqui retratados em pinturas e desenhos. Não se trata de olhar para o outro, e sim, para o próximo.
Na série ‘Tempestade, Bonança, Tempestade’, compartilhamos cenas de prazer, descanso e insurgências em pinturas a óleo sobre lona de caminhão. A narrativa começa antes do sol nascer e se recolhe às 18h, quando a paisagem muda de cor e anuncia o tempo do descanso. Nesses retratos estão pequenas vinganças, de trabalhadores que insistem em ‘cozinhar o galo’ na hora do almoço, ‘quebrar o brinquedo do patrão’, ‘arriar a bateria’ e compartilhar com a paisagem o sonho. Sonhamos coletivamente com o momento em que o trabalho não será mais hierarquizado por marcadores de classe, gênero e raça. Sonhamos coletivamente com o direito do trabalhador.
Em ‘A universidade e os under commons', o teórico cultural Norte-Americano, Fred Moten fala sobre a necessidade de refletir em torno do trabalho e do trabalhar, do descanso e do descansar, sem diferença, para ele “o desregramento é necessário e as possibilidades de criminalidade e de fuga que o trabalho sobre o trabalho requer”[1]. É preciso detectar os limites das regras que nos são impostas, para assim, poder transformar a ordem que nos rege. É preciso refletir sobre os conceitos de eficácia e eficiência como modos do pensamento capitalista e neoliberal aplicados à produção.
A proximidade que Felipe retrata ferramentas em desuso com ossos do corpo humano na série ‘ferramentas cansadas’ reflete como um ‘corpo de trabalho’ é visto e descartado como um objeto. O corpo é ferramenta e a ferramenta é corpo. Essa obra retrata um sentimento histórico, de luta e de resiliência, sendo testados e humanizados para abrir caminho a uma nova consciência subjetiva.
Em ‘O uso dos objetos’, o filósofo francês Nicolas Bourriaud, nos explica a diferença, cunhada por Marx, entre ferramentas naturais de produção (por exemplo, trabalhar a terra) e ferramentas de produção criadas pela civilização. “No primeiro caso, argumenta Marx, os indivíduos estão subordinados à natureza. No segundo, lidam com um "produto do trabalho", isto é, capital, uma mistura de mão de obra e ferramentas de produção. Estes só são mantidos juntos pela troca, uma transação inter-humana incorporada por um terceiro termo, dinheiro.”[2]
Essa assemelhação entre mão de obra e ferramentas de produção regidas pelo dinheiro, sintetiza de forma direta o comentário de Felipe ao aproximar partes do corpo humano com ferramentas de trabalho. Ambos, a serviço do mesmo capital, se movimentam na mesma direção, mas são levados a um ponto de exaustão que nos faz vislumbrar uma revolução, uma retomada de poder. Felipe retrata um sintoma e aponta para uma direção.
Na obra ‘A espera do raio verde’, vemos uma pintura de grandes dimensões, ao fundo o sol se põe no horizonte alaranjado, na terra, lona crua, remendada, estamos ao lado de corpos humanos, corpos planta e corpos ferramenta. Todos virados em direção ao sol, se permitindo apreciar a beleza da paisagem e do tempo que anuncia diferentes signos para cada corpo presente. Para alguns, seria o fim do expediente de trabalho, para outros, apenas uma mudança de iluminação e temperatura, e para outros, talvez nem faça diferença. Habitamos assim a terra, e fazemos parte dela.
As cores do céu são marcadores de algo maior, de uma força da natureza que conspira, guia e orienta nossos passos. Também seguindo o tema de paisagem e trabalho, vemos a obra ‘o céu por testemunho’, um compilado de pinturas de passagem sobre restos de pneus usados, em relação ao vídeo ‘um lugar para encostar minha alma’, onde o corpo finalmente encontra o descanso necessário.
Já no vídeo ‘ampulheta quebrada’ nosso eixo é temporal, nas ruínas daquilo que ainda não foi construído, vemos máquinas transformarem montanhas inteiras em pó. O tempo geológico sendo afrontado pela ilusão de que tudo pertence ao homem. O filme é acompanhado de três pinturas menores, que citam Heráclito e T.S. Elliot e nos dizem, “O mundo mais belo é como um monte de pedras lançado em confusão” seguido de “Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó”. Os trechos revelam a situação absurda diante de nós, de momentos em que o medo e a confusão imperam por um projeto de progresso que nos aniquila a todos. O tempo também é protagonista da obra ‘relógio de serra (against)’, aqui as ferramentas retomam como sujeitos que também contam as horas.
Essa exposição nos atravessa em tempo e em luta, para uma compreensão de mundo em que voltamos a ser livres. No texto ‘Por que obedecer?’ de Andityas Soares Matos, ela nos afirma, “Chega. É hora de acordar dos sonhos da razão, do sono da razão, e perceber que a riqueza de uma civilização, que a riqueza de uma espécie – homo sapiens, em nosso caso – não está naquilo que ela fez, mas propriamente naquilo que ela ainda não fez, naquilo que ela pode fazer...”[3]
Em uma época de dominação completa, o ser humano segue abrindo brechas e caminhos, para re-imaginar a vida em sua potência. Felipe Rezende se dedica em sua prática a esse sonho, que é tão necessário e urgente quanto respirar, um sonho de justiça, por aquilo que ainda não foi feito. Quem sonha em queda livre, sabe que é preciso sonhar.
Catarina Duncan
[1] HARNEY, Stefano; MOTEN, Fred. The undercommons: fugitive planning & black study. New York: Minor Compositions, p. 5, 2013.
[2] BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo, 1 ed. São Paulo: Martins Editora, p. 19, 2009
[3] MATOS, Andityas Soares. Por que obedecer? PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 13, página 58 - 65, 2019.