Pedro Alban

Salvador, 1993
︎
Pedro Alban é artista visual e arquiteto. Sua pesquisa se debruça sobre o universo da construção e seus processos práticos ou subjetivos - fluxos materiais, implicações ecológicas e questões de memória. A experiência de ser o último a entrar em edificações antes delas deixarem de existir - ser a barreira final entre resgate e descarte -  movimenta sua produção mais recente.

Projetos selecionados incluem participações na Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo (2019, 2022) e na Bienal Ibero-Americana de Arquitetura (2022), da qual foi um dos finalistas; as exposições individuais "Contracorpos" (2019) e "Notícias de Lugar Nenhum", ambas em Salvador; e ainda participação na 64ª edição dos Salões de Artes Visuais da Bahia com o trabalho  "Todo Material é Memória, Todo Resíduo também" (2022). É coautor do livro Cincotrês (2022) e ministrou a oficina "Território Material" no Instituto Tomie Ohtake (2024). Entre 2017 e 2022 fez parte do coletivo Mouraria 53 que, entre outras ações, ocupou e renovou  uma ruína no centro antigo de Salvador a partir dos restos de mais de 60 demolições da cidade.

Desde 2020, junto com Natália Lessa e Fernanda Veiga, coordena a Arquivo, um projeto dedicado a facilitar e popularizar o reuso de materiais na arquitetura. 


Pedro Alban is a visual artist and architect. His research focuses on the universe of construction and its practical or subjective implications- material streams, environment, and issues of memory. The experience of being the last person to enter buildings before they cease to exist - the final barrier before disposal -  drives his most recent production.

Selected projects include participations in São Paulo's International Architecture Biennale (2019, 2022) and in the Iberoamerican Architecture Biennale (BIAU - 2022) , in which he was one of the finalists; the solo exhibitions "Contracorpos" (2019) and "Notícias de Lugar Não", both in Salvador; and also a participation in the 64ª edition of the Salões de Artes Visuais da Bahia with the work  “Every Material is Memory, Every Residue Too” (2022). He is co-author of the book Cincotrês (2022) and was in charge of the workshop "Material Territory" at Instituto Tomie Ohtake (2024). Between 2017 and 2022 he was part of the collective Mouraria 53 which, among other actions, occupied and renovated  a ruined house in the historic center of Salvador using remains from more than 60 demolitions sites in the city.

Since 2020, together with Natália Lessa and Fernanda Veiga, he has coordinated Arquivo, a project dedicated to simplifying and expanding the reuse of materials in architecture.


Obras disponíveis







Tudo é poeira e pedra, até que Pedro

A eternidade é uma ideia humana, e, portanto, é só uma figura de linguagem.”
Frase atribuída a Jorge Luís Borges


Pedro Alban se desloca como um catador contemporâneo, coletando restos de um mundo em desaparição — pedaços de histórias descartadas e memórias perdidas que a cidade acumula entre suas ruínas e constantes reconstruções. Matérias brutalizadas pelo tempo, pelo descaso, pela violência urbana, que no exercício da coleta como gesto criativo, transformam-se em fragmentos do abandono.

Cada objeto carregado em sua caminhonete traz em si a marca de um tempo decorrido, em sobreposições que evocam as ausências do todo. Esse todo, mesmo partido, ainda carrega algo de completo em si, numa reconfiguração ativa dos espaços de memória e identidade, que se recusam a serem enterrados pela despersonalização da própria arquitetura como dispositivo de progresso.

Essa prática de observação, coleta e intervenção faz do artista um guardião/reorganizador do mundo, rearranjando esses fragmentos em composições que redefinem espaços físicos e simbólicos. Ao explorar esses objetos, Pedro questiona a função da demolição como um evento destrutivo e, ao mesmo tempo, um dispositivo pedagógico que turva a memória coletiva ao apagar traços do passado, num gesto político: uma forma de obliterar a percepção da cidade como parte de nós e interferir na construção das narrativas de identidade e pertencimento.

Esta exposição carrega o luto pelas perdas acumuladas na história de uma Bahia, os saberes construtivos que vão sendo esquecidos, a memória dos trabalhadores que ergueram essas estruturas e dos moradores que nelas viveram, o som e o cheiro dos antigos centros urbanos, as texturas e as cores das fachadas que desbotam, a atmosfera local, seus traços arquitetônicos e o próprio ritmo de vida, que é alterado nos processos de demolição e reconstrução. Essa tristeza, entretanto, é atravessada por uma contramelancolia que questiona a realidade das relações difíceis que tais construções, em verdade, imóveis, representavam — desde a precariedade nas condições de trabalho até as relações familiares frágeis. Essa qualidade documental revela o que acontece nos últimos dias de um edifício, trazendo uma urgência para a pergunta: como fixar a memória, e a materialidade, neste caso, dos lugares que já não existem?

De um lado, há o rigor e a precisão de uma arquitetura em desintegração; do outro, a fluidez e a abstração que as artes visuais permitem refazer. Traçados, formas e volumes arquitetônicos são reconfigurados em um território que evoca, simultaneamente, familiaridade e estranheza, remetendo a ruínas e fragmentos de uma cidade interior também desmembrada. Nessa cidade encontramos os rastros de uma reestruturação de encontros, desencontros, conflitos e ausências, que revelam a incessante busca pelo próprio sentido de fragmento, levando-nos a refletir: como habitar essas memórias dispersas?

Restos de paredes, tábuas de assoalho, caibros monolíticos e plantas baixas se tornam içamentos das texturas do vivido. Tais elementos redefinem o presente, ao mesmo tempo em que desafiam a transitoriedade das experiências humanas. Aqui, a memória não se coloca como uma tentativa de restaurar o passado nem de ressignificar o que sobreviveu. Ela é apenas mais um acúmulo.

Em suas peças, há essa tensão perene e contraditória entre o desejo de fixar formas e o de aceitar sua impermanência — um reflexo, talvez, de nosso próprio tempo, no qual corpos são desafiados pelo espaço físico que se transforma, como se as paredes da galeria fossem também destruídas para dar lugar a uma cartografia desses escombros. No fim, sua prática artística não busca conclusões ou totalidades; ao contrário, acolhe o fragmento, produzindo mais sobra.

Pedro enfrenta o dilema dos últimos a visitar espaços a serem demolidos: o de ser a (derradeira) barreira entre o resgate e o descarte. Vive o paradoxo de conter o impulso de acumular ao mesmo tempo em que sente a urgência de preservar — uma prática marcada pela luta contra o lixo e a sua inevitabilidade, subvertendo o destino residual ao qual esses fragmentos seriam condenados.

Esses espaços são também uma crise, em que o artista se depara com a dicotomia do desejo. Por um lado, acredita no potencial deste como uma ferramenta que transforma a ruína em monumento; por outro, percebe que o mesmo alimenta a obsolescência na sociedade contemporânea. Como um arquiteto/artista, se vê responsável por colecionar objetos que, ao final, formam um outro mundo desorganizado.

Notícias de lugar nenhum é, então, um convite para pensar a própria natureza do esquecimento, abordando-o como fabulação de uma perda inevitável, com consequências para a memória coletiva, para o que decidimos preservar e o que deixamos para trás. Pedro Alban cata o que lhe toca o coração: marcas do que desaparece diante de nós sem que façamos absolutamente nada. Guiado por esse afeto silencioso, um gesto que vai além do resgate material, se aproxima da criação de novos modos de pensar o mundo desde a ruinaria, no que poderíamos chamar de — por que não? — um ato de amor à própria memória como edifício de acúmulos. Afinal, parafraseando Johann Paul Richter (1763-1825), a memória é o paraíso e o inferno do qual não podemos ser expulsos.

João Gravador na ocasião da exposição Notícias de lugar nenhum, n’A Galeria


Como é possível fazer das construções arquitetônicas a expressão de uma alma, ou de um sentimento de um homem? [1] . Wölflin, historiador da arte no século XIX, colocava essa questão a partir de uma tese: todo elemento psíquico é transformado em forma corporal. Na casa corpo, as janelas são pálpebras.

O olhar sempre esteve no núcleo da paranoia nativa dos homens. Contudo, no mundo tomado por telas e câmeras, nossos corpos são cada vez mais espiados por um olho absoluto [2] que abalou definitivamente as barreiras da intimidade. Esse olho nos persegue sem tréguas. Tanto no momento em que abrimos os olhos para enfrentar o cotidiano quanto quando os fechamos para enfrentar nossos sonhos, estamos condenados à inelutável modalidade do visível, como escreveu Joyce em seu Ulysses. Para Gérard Wajcman, a arquitetura tem como princípio defender o homem desse “obscuro olhar” [3]. Não se trata então apenas de construir em torno do vazio, mas de um vazio em segunda potência que estrutura o que está dentro e o que está fora, uma janela. Essa perspectiva faz da janela uma moldura para o vazio que permite ver e também esconder, fazer ver o que está além dela ocultando o que está aquém, o vidente. Ou seja, uma casa é um lugar de proteção e tentativa de domínio do olhar que nos espreita. Da janela somos nós que espiamos.

Filareto, escultor e arquiteto renascentista, dizia que uma construção é como um homem vivo, que adoece e morre, e que as vezes se cura quando encontra um bom médico. Algumas construções nunca adoecem, e morrem subitamente. Outras são mortas pela ação do homem por um motivo ou outro [4]. As obras de Pedro Alban aqui apresentadas possuem uma inquietante relação com uma casa em ruínas, local onde muitas delas foram concebidas. Construída para habitar pessoas, tornou-se com o tempo vazia, envelhecendo e morrendo aos poucos com o desgaste de suas estruturas através do tempo. Das paredes trincadas surgiram frestas. E o que é uma fresta na parede? Uma fenda que aloja o olhar do outro que tanto nos perturba.

Assim, ao penetrar na velha casa, tive que me despir da ideia de proteção, meu corpo estava em questão, era preciso andar com cuidado pelos diversos cômodos. Encontro um vão onde as obras de Pedro estão espalhadas pelas paredes, algumas inacabadas, mas ainda assim sendo um anteparo para o meu olhar. Me dou conta então que não é mais a parede que escora as obras, mas que são as obras que dão algum tipo de sustentação para que a visão não se perca nas frestas entre os tijolos. Ao escorar a casa com suas obras, Pedro construiu janelas. Despontam então três referências cruciais para a criação do artista: o inquietante olhar paranoico, a instabilidade das coisas e a instabilidade dos corpos. Um nome se impôs para a série de trabalhos: Contracorpos.

Nos anos 30 o psicanalista Jacques Lacan concebeu sua teoria do Estádio do espelho como o momento em que a criança constrói a imagem de si a partir de uma relação com a imagem especular. Ou seja, o corpo para a psicanálise não é algo em si, sempre passa por uma construção a partir do corpo do outro. Por isso, contrariamente aos outro seres na natureza, dizemos que “temos” um corpo, e não que “somos” um corpo. Como consequência, ter um corpo, construí-lo, implica poder igualmente desconstruí-lo, ou mesmo perdêlo. Para Lacan não há promessa de casamento estável entre o Eu e seu corpo.

Se o século 20 foi o século das máquinas e dos computadores, o século 21 é o século do corpo. Graças às peripécias incríveis da tecnologia, o homem hoje reinventa seu corpo sem deuses. Muitas vezes torturado pela exigência de felicidade que o olhar do outro lhe impõe, ele busca aprimorar-se, não sem angustia, diante do espelho. Tornar-se amável não deixa de ser uma ação movida pela intuição paranoica de que o outro pode nos largar. Capturados pelo olhar cego dos Smartphones, todos se conectam, mas acabam cada vez mais sós.

As obras de Pedro retratam essa tensão entre os corpos e as coisas. “São Paulo (porque você é tão ocupada)” pinta a comédia dos amantes entre escoras (talvez muletas?) mostrando a precariedade das relações. Como seres de linguagem, nossa moradia é a palavra, como seres de carne nosso destino é o desencontro sexual, pois nunca dois farão um. Nossa solidão faz com que jamais estejamos seguros do desejo do outro, queríamos que o amor fosse tão sólido como as paredes, mas até estas se corrompem. Como não ser paranoico? Na solidão dos corpos e das casas abandonadas, nem tudo está perdido, podemos nos apoiar na teoria lacaniana que faz da arte a última barreira antes do caos. Onde os nostálgicos sonham com restauração, os artistas vislumbram criação.

Marcelo Veras na ocasião da exposição Contracorpos, na Aliança Francesa Salvador


[1] Wölfflin, H. (1886), Bruno Queursage (trad.), Ed. Arts et esthétique, Paris, 2005, p. 41.
[2] Expressão cunhada pelo psicanalista lacaniano Gérard Wajcman que dá nome à seu livro L’oeil absolut, Paris Ed. Denoël, 2010.
[3] Wajcman, G. Fenêtre. Chroniques du regard et de l’intime. Ed. Verdier, Paris, 2004.
[4] Filareto, apud Viviana SaintCyr em Architecture, corps et sublimation, in Les pages du LAA, Louvain, 2008, p. 16.



︎     ︎     ︎