DAS COISAS QUE A TERRA NÃO COME
expo-cápsula de Milena Ferreira
Ruínas da memória, pó do porvir
A memória pode ser entendida como um conjunto de imagens que constituem o sentido daquilo que não mais se vê. A infância, como marca indelével, se sustenta além do tempo, de forma que suas imagens se repetem em gestos, cores, aromas, texturas e palavras. Essas marcas não são escolhidas por nós porque existem em razão da relação que temos com o mundo. Denotam como o mundo nos fez. O mesmo ativa essas marcas e memórias. Na relação entre o indivíduo, os espaços e tempos que o fundam, se desenha a atual pesquisa de Milena Ferreira, artista visual soteropolitana.
Logo no início da sua trajetória artística, Milena voltou-se às ruínas do Centro Histórico de Salvador, região onde viveu e por onde transitou desde a sua infância, muitas vezes com seu pai, que é projetista. Durante sua pesquisa sobre ruínas, a artista chegou à conclusão de que as construções vivem, sofrem e vivem novamente quando estão desfalecendo. Temos uma noção de tempo espiralar na relação com a vida e a morte, porque a memória também é uma morte, algo de inacessível durante a nossa vida.
Quando Milena ainda apresentava seus trabalhos em feiras, o contato direto com o público lhe revelara a dimensão coletiva das memórias que seus trabalhos sempre despertavam e seguem despertando. Ali já se percebia a imensa população que reside nas memórias das ruínas, no vazio das casas.
Sua pesquisa inicial passa pelo desenho e se desdobra na gravura e suas diversas formas de execução: litografia, xilografia, serigrafia, calcografia… Milena Ferreira define a gravura como “construção a partir da retirada de camadas. Você vai desconstruindo para construir”, afirma a artista que percebe esses processos nos vácuos e “entre-tempos” das ruínas. As construções e ambientes retomados por ela estão no limbo entre o passado e o futuro, entre a materialidade e o imaterial. De alguma forma, a gravura, entre a matriz e a impressão, sugere a mesma situação. Em ambas, ruína e gravura, o que vemos não é sua base/matriz ou sua primeira fase. Vemos um fruto de outra materialidade que não alcançamos. A gravura também é um fragmento da matriz, quiçá sua ruína. Nesse sentido, estamos diante de fragmentos cujo teor simbólico e imaginário partem de uma construção e se encontram com ecos das memórias dos corpos que transitam por um terreno geográfico ou visual compartilhado.
Há muito, Milena Ferreira acentua essa poética nas camadas técnicas e plásticas do trabalho. Na obra “Longa Vida”, por exemplo, a artista utilizou a matriz cartonada para revelar ruínas localizadas na Barroquinha. Ao utilizar um material tão acessível quanto frágil, transformou a própria matriz em uma ruína porque a mesma não suporta a pressão da impressão, não resiste às mordidas do tempo. Na série “Habitar é obra”, Ferreira mais uma vez alinha técnica à poética ao utilizar azulejos como suporte para pinturas de ações domésticas. Saindo da arquitetura, componente externo, a artista adentra o ambiente interno das casas.
A memória pode ser entendida como um conjunto de imagens que constituem o sentido daquilo que não mais se vê. A infância, como marca indelével, se sustenta além do tempo, de forma que suas imagens se repetem em gestos, cores, aromas, texturas e palavras. Essas marcas não são escolhidas por nós porque existem em razão da relação que temos com o mundo. Denotam como o mundo nos fez. O mesmo ativa essas marcas e memórias. Na relação entre o indivíduo, os espaços e tempos que o fundam, se desenha a atual pesquisa de Milena Ferreira, artista visual soteropolitana.
Logo no início da sua trajetória artística, Milena voltou-se às ruínas do Centro Histórico de Salvador, região onde viveu e por onde transitou desde a sua infância, muitas vezes com seu pai, que é projetista. Durante sua pesquisa sobre ruínas, a artista chegou à conclusão de que as construções vivem, sofrem e vivem novamente quando estão desfalecendo. Temos uma noção de tempo espiralar na relação com a vida e a morte, porque a memória também é uma morte, algo de inacessível durante a nossa vida.
Quando Milena ainda apresentava seus trabalhos em feiras, o contato direto com o público lhe revelara a dimensão coletiva das memórias que seus trabalhos sempre despertavam e seguem despertando. Ali já se percebia a imensa população que reside nas memórias das ruínas, no vazio das casas.
Sua pesquisa inicial passa pelo desenho e se desdobra na gravura e suas diversas formas de execução: litografia, xilografia, serigrafia, calcografia… Milena Ferreira define a gravura como “construção a partir da retirada de camadas. Você vai desconstruindo para construir”, afirma a artista que percebe esses processos nos vácuos e “entre-tempos” das ruínas. As construções e ambientes retomados por ela estão no limbo entre o passado e o futuro, entre a materialidade e o imaterial. De alguma forma, a gravura, entre a matriz e a impressão, sugere a mesma situação. Em ambas, ruína e gravura, o que vemos não é sua base/matriz ou sua primeira fase. Vemos um fruto de outra materialidade que não alcançamos. A gravura também é um fragmento da matriz, quiçá sua ruína. Nesse sentido, estamos diante de fragmentos cujo teor simbólico e imaginário partem de uma construção e se encontram com ecos das memórias dos corpos que transitam por um terreno geográfico ou visual compartilhado.
Há muito, Milena Ferreira acentua essa poética nas camadas técnicas e plásticas do trabalho. Na obra “Longa Vida”, por exemplo, a artista utilizou a matriz cartonada para revelar ruínas localizadas na Barroquinha. Ao utilizar um material tão acessível quanto frágil, transformou a própria matriz em uma ruína porque a mesma não suporta a pressão da impressão, não resiste às mordidas do tempo. Na série “Habitar é obra”, Ferreira mais uma vez alinha técnica à poética ao utilizar azulejos como suporte para pinturas de ações domésticas. Saindo da arquitetura, componente externo, a artista adentra o ambiente interno das casas.
Aqui, na expo-cápsula "Das coisas que a terra não come", na RV Cultura e Arte, assistimos a
Milena Ferreira protagonizar um terceiro movimento: o entrelace do chão da casa ao da
pessoa. A artista começa sua construção com a memória acessível do chão que um dia pisou,
da casa que seu pai adornava com pedras, do terreno que sua família um dia perdeu. A partir
da gravação em metal de pedras documentadas em fotos, a obra “Tropeço” nos leva a encarar
os diversos mecanismos de estruturação da memória. A pedra que não existe mais como foi
vista, foi acessada através de fotografias de um momento que nunca mais se repetirá. Temos
uma elaboração sobre a reprodução do infinito que resulta no finito e o compõe. O chão para
sempre existirá, mesmo que se altere. Contudo, o que quer que aconteça baseado nele, não
terá a mesma sorte. “Vi, mas não lembro” dispensa melhor tradução desse movimento. O pó do
carvão, estruturado para construção de uma forma, reproduz o que é poroso na distância da
memória. O latão, embora não seja necessariamente maleável, é sensível e registra o que o
atinge, assim como a infância. Através dessa prática, Milena Ferreira reelabora a inversão da
finitude.
O chão de cimento queimado vermelho é uma memória comum a muitas pessoas. E embora utilizando uma matéria tão bruta, na série “Das coisas que a terra não come”, Milena nos apresenta um ensaio sobre o virtual, o impalpável que, inclusive através da expografia, flutua diante dos nossos olhos e dentro das nossas mentes. Os brinquedos da infância se transformam em matrizes que revelam o vazio das lembranças. Vemos sombras abertas a cada olhar que reentra. Há também uma ironia na tentativa de gravar em cimento ferramentas infantis porque é como tentar marcar a memória no chão de um espaço, ignorando que não só aquele espaço não existe mais para o indivíduo como o próprio indivíduo também não existe mais para naquele espaço. Se tratando de memória, morte/distância e vida/contato coexistem diante de nós. Ao mesmo tempo, buscamos novas vidas, novas relações e lugares no presente onde os fragmentos podem ser encaixados.
Milena Ferreira tem a rara capacidade de construir e causar impacto com obras que, embora tenham um fundo de vivência pessoal, não dependem da autora. Não se trata de ensaiar universalidade, mas sim de saber o que revelar e o que resguardar a fim de fortalecer a obra e sua relação com os públicos. Esse é um dos elementos que torna a sua produção absolutamente notável. Há ainda uma inegável consistência na pesquisa apresentada por Milena Ferreira porque a artista constroi sua trajetória em atos e feitos estruturados, apresentando uma pesquisa segura com destreza técnica inegável. Sua poética é de relevância e riqueza voluptuosa porque, no fundo, a artista apresenta as memórias da infância da forma que ela deseja apresentar, não da forma que as memórias se fizeram. Devemos ainda perceber com atenção e respeito a trajetória de uma artista negra que apresenta sua poética sem se expor, deixando que as pessoas sintam o que conseguem acessar. Milena Ferreira afirma e instiga a subjetividade com rara maestria provocando impactos inevitáveis.
Seja bem vinda/e/o!
Que suas memórias te acolham e preencham o espaço.
João Victor Guimarães
junho, 2024
O chão de cimento queimado vermelho é uma memória comum a muitas pessoas. E embora utilizando uma matéria tão bruta, na série “Das coisas que a terra não come”, Milena nos apresenta um ensaio sobre o virtual, o impalpável que, inclusive através da expografia, flutua diante dos nossos olhos e dentro das nossas mentes. Os brinquedos da infância se transformam em matrizes que revelam o vazio das lembranças. Vemos sombras abertas a cada olhar que reentra. Há também uma ironia na tentativa de gravar em cimento ferramentas infantis porque é como tentar marcar a memória no chão de um espaço, ignorando que não só aquele espaço não existe mais para o indivíduo como o próprio indivíduo também não existe mais para naquele espaço. Se tratando de memória, morte/distância e vida/contato coexistem diante de nós. Ao mesmo tempo, buscamos novas vidas, novas relações e lugares no presente onde os fragmentos podem ser encaixados.
Milena Ferreira tem a rara capacidade de construir e causar impacto com obras que, embora tenham um fundo de vivência pessoal, não dependem da autora. Não se trata de ensaiar universalidade, mas sim de saber o que revelar e o que resguardar a fim de fortalecer a obra e sua relação com os públicos. Esse é um dos elementos que torna a sua produção absolutamente notável. Há ainda uma inegável consistência na pesquisa apresentada por Milena Ferreira porque a artista constroi sua trajetória em atos e feitos estruturados, apresentando uma pesquisa segura com destreza técnica inegável. Sua poética é de relevância e riqueza voluptuosa porque, no fundo, a artista apresenta as memórias da infância da forma que ela deseja apresentar, não da forma que as memórias se fizeram. Devemos ainda perceber com atenção e respeito a trajetória de uma artista negra que apresenta sua poética sem se expor, deixando que as pessoas sintam o que conseguem acessar. Milena Ferreira afirma e instiga a subjetividade com rara maestria provocando impactos inevitáveis.
Seja bem vinda/e/o!
Que suas memórias te acolham e preencham o espaço.
João Victor Guimarães
junho, 2024
![](https://freight.cargo.site/t/original/i/fdf3a79cce8baed4536b086af8441aec991b326d28f49ad7041e297730b113a3/IMG_0243.jpg)
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série Das coisas que a terra não come
Milena Ferreira
impressão de brinquedo em cimento queimado (cimento, areia e pó xadrez)
15x10x5cm cada, aproximadamente
2024
+info | adquirir
Milena Ferreira
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