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“Acho que vocês deveriam sonhar a terra,
pois ela tem coração e respira.”
Davi Kopenawa, entrevista a F. Watson, 1992


Nas palavras do xamã yanomami Davi Kopenawa que compõem o livro A queda do céu, o sonho é uma experiência de aprendizado e apreensão de mundos, de diferentes formas de ver, compreender, sentir e viver. Para ele, os brancos cultivaram uma forma exclusiva de sonhar consigo mesmo, inviabilizando seu contato integrado com a floresta, com a terra e o céu.

Rômolo D’Hipólito se propõe alimentar nossos sonhos para além de si mesmo, de nós, buscando na terra, nas plantas e florestas um repertório de cores, texturas e formas que se abra e se desdobre em outros mundos. Em sua última exposição individual, Pequeno retorno à terra, convidou a acompanhar seu olhar de busca à origem na terra, mostrando como sua produção artística está imbricada em sua condição de itinerância — com viagens que lhe possibilitaram imersões em contextos geográfico-culturais distintos, aproximando Foz do Iguaçu a Tisserdmine, no Marrocos, e Yangshuo, na China, passando também por Oaxaca, no México.

Agora, com um conjunto mais recente de obras, (es)colhe a mandioca como uma espécie de portal para sonhar outras vidas, sair de si mesmo através do aprendizado com os contextos locais centro e sul-americanos, onde esse alimento se difundiu e se transformou de várias maneiras. A mandioca, também chamada de aipim e macaxeira no Brasil, vindo do guarani mandi’o ou manji’o, recebe outros nomes a depender do território: yuca nomeia o tubérculo em países como Equador, Guatemala e México. Sua ampla difusão, ao longo de séculos de cultivo, promoveu grande diversidade genética e das formas de seu emprego nas culturas de vários povos originários.

Nas pinturas da série “Retornos” e na escultura “Ode”, por exemplo, há uma (con)fusão entre mãos, pés, pernas, dedos, raízes, galhos e cabeças. A evocação ao corpo humano também vai se desfazendo à medida que seus sonhos se ampliam, se permitindo deslocar de si mesmo para mergulhar no solo úmido, como uma raiz que viaja e se transforma, toma outros nomes e configurações, podendo ser um cajado ou um monte de farinha, uma goma ou uma bebida fermentada.
O vocabulário imagético próprio da plasticidade material e simbólica da yuca encantou Rômolo e tem o levado a projetar imagens de um universo onírico no qual essas raízes reverberam como extensões de corpos, utensílios, paisagens e relações. Nesse mundo, um outro país é possível, com outras bandeiras e estandartes para outras festas e batalhas. É o que vejo no estandarte de tecido, corpo-espaço-paisagem dá lugar a simbologias incertas, conversões entre signos familiares e estranhos, talvez vindos de sonhos e viagens do artista.

A diversidade da mandioca, para além de seu nome, genética e formas de uso, também aponta para camadas fundamentais da (re)construção de identidades na América Latina. Hoje, as pinturas e colagens de Rômolo vão se distanciando da figuração antropomórfica — ainda que com resquícios de seus sonhos antigos —, e se lançam em um rumo abstratizante sensível e vigoroso, contagiando também suas cerâmicas e tecidos.

Nesse mundo de sonhos que deriva de sua fixação sobre as trajetórias da yuca pelos territórios centro e sul-americanos, há ainda espaço para ressignificar os ícones “mais baratos” das identidades nacionais que impõem suas fronteiras (ora mais duras, ora mais porosas), nos imaginários do que somos e podemos ser. Em um das pinturas Retornos, o solo vibrante de cultivo e colheita da mandioca se abre em um caminho para o céu, o sol, por onde caminha um menino-divindade com seu cajado de yuca em punho erguido, vestindo um chapéu-cabeça-de-passarinho-a-cantar, sua camiseta (de um time de futebol de algum outro mundo), e seus chinelos.

Com as séries de trabalhos mais recentes, dissolvendo suas figuras antropomorfas, Rômolo alimenta a capacidade de sonhar a terra através desses tubérculos viajantes que nutrem nossos corpos e florestas. Seu anseio é trazer outros sentidos para além daqueles “dessa cultura que enfiaram na gente” — como ele mesmo diz.

O artista que retornou à terra, agora busca sonhá-la.


Tálisson Melo


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