Quase Nordeste
...é no “quase” que significantes se encontram e axiomas são desafiados.
Q_N fala das complexidades e nuances que compõem a identidade de uma região inventada. Aqui, fazendo uma “intervenção” no texto curatorial da exposição “quase árido”, de Uriel Bezerra, refere-se ao “between”, aquilo que fica entre uma coisa e outra, cuja potência desse campo é provocar furos no real.
Uma geografia outra, cujas bordas rarefeitas apontam para aquilo que o discurso dominante tende a foracluir — termo psicanalítico que descreve a exclusão de uma experiência ou conceito da consciência. Nesse contexto, a arte assume o papel de resgatar o que foi relegado ao inconsciente cultural, abrindo espaço para a expressão de vozes e histórias silenciadas ou marginalizadas pela tentativa de homogeneização. Q_N pode ser interpretado por uma lente que explora os processos de formação e transformação da identidade. Ao evocar a ideia do "quase", remete ao conceito de um estado liminar, um lugar de transição que se posiciona entre o ser e o tornar-se, entre o conhecido e o desconhecido, entre conteúdo e continente, revelando um sujeito em constante desubjetivação. É nesse espaço de ambiguidade que o inconsciente se manifesta, desafiando as narrativas estabelecidas e criando novas possibilidades, dissidências e reinvenções.
O grito môco da natureza
Em constante fluxo e permeados por conflitos e contradições, o sujeito e a natureza são uma dobradiça cuja flexão emite um som. O "grito da natureza", que também pode ser lido como uma manifestação do Real lacaniano, é aquilo que insiste e retorna, mas que não pode ser plenamente simbolizado ou integrado ao campo do discurso, a menos que escape ao real vivo. É a insistência de uma dimensão inconsciente que está sempre além do alcance do simbólico e do imaginário, que marca a tensão entre o que se pode representar e o que está para além da representação, demarcando o território da Arte. Na exploração dessas tensões, a produção artística atual desafia certezas e fronteiras, revelando que o "real" é apenas um fragmento de uma realidade mais ampla, permeada por interstícios, silêncios, abismos e incertezas.
O grito do "quase árido" é o grito da fronteira, como o quasar que expande o espaço. As obras expostas recorrem às forças ancestrais para narrativas do presente, como quem escapa das tentativas de controle. Assim, a natureza torna-se uma metáfora do inconsciente, lembrança do que foi esquecido e que retorna como reivindicação de um espaço-tempo de uma natureza outra: a subjetiva. Ou seja, os atravessamentos das questões tratadas nas obras pertencem às bordas rarefeitas dessa “desnatureza”.
Um quasar pulsando
A aridez, mais que ausência e secura, é um campo de pulsação e dilatação. É o espaço do encontro entre dois significantes que não se completam, mas que, ao se confrontarem, criam rachaduras, mas não quebram. É por essas fissuras que o invisível e o inaudito encontram passagem, expondo aquilo que não pode ser plenamente representado, mas que pulsa e insiste.
A exposição “quase árido” é, assim, um convite para habitar esse espaço supermassivo, para atravessar a aridez e ouvir os “ecos-môcos” do que resiste à captura pelo simbólico. Q_N é uma barragem daquilo que, ao não se submeter à palavra nem à imagem, revela as potências escondidas da existência do não dito ou do ponto cego, interrompendo a percepção para iluminar outras questões e quem sabe reflorestar novos campos de aridezes e nordestes.
Carlos Mélo