Das coisas que a terra não come
Milena FerreiraTexto crítico: João Victor Guimarães
15/06 a 27/07/2024
Release
A partir de 15 de junho, com a realização de uma visita guiada pela artista, a RV Cultura e Arte apresenta Das coisas que a terra não come, expo-cápsula da artista baiana Milena Ferreira, com texto crítico de João Victor Guimarães.
O projeto apresenta três séries inéditas que Milena tem desenvolvido no contexto de sua pesquisa de mestrado e, mais recentemente, durante residência artística na Zona Fluxos, em Salvador. As obras, além de trazerem o chão como interesse discursivo central, estabelecendo uma ideia de fundação/fundamento, reafirmam uma prática gráfica como núcleo da produção da artista e partem de seu interesse pela estética da ruína como lugar de memória e pertencimento no cenário urbano.
Entre os trabalhos, a série que dá nome a exposição, “Das coisas que a terra não come”, composta por 20 objetos em cimento queimado (uma mistura de cimento, areia e pó xadrez), investiga a gravura e sua capacidade expansiva enquanto linguagem artística, discutindo sobre as relações entre moldagem, impressão, espacialidade e reminiscência. “Das coisas que a terra não come, nasce da captação das formas de brinquedos da minha infância, e faz referência ao dito popular “se fosse bom a terra comia”, onde inverto os valores de bom e ruim, trazendo marcas de objetos que não se apresentam materialmente, mas seguem ali, impregnadas, refletindo sobre a tridimensionalidade gráfica” analisa Milena.
As outras duas séries incluídas no projeto - “Tropeço”, uma coleção de matrizes de água-tinta que aludem as formas e texturas das pedras e “Vi, mas não lembro”, um desenho em carvão sobre papel no qual Milena explora tessituras de um terreno rochoso – apontam ainda para um momento de pesquisa em que a artista, além de recorrer a suas memórias, passa a lidar com questões que envolvem “o outro” em sua produção. “Um fator raro e que torna os trabalhos de Milena Ferreira absolutamente relevantes é a sua capacidade de construir e causar impacto com obras que, embora fruto de uma vivência pessoal, não dependem do relato da autora. Não se trata de ensaiar universalidade, mas sim de saber o que revelar e o que resguardar a fim de fortalecer a obra e sua relação com os públicos", comenta em seu texto o curador e crítico de arte João Victor Guimarães.
Das coisas que a terra não come será aberta ao público com uma visita guiada pela própria artista no sábado, dia 15 de junho, às 10:30 (atividade gratuita e aberta, não é necessário agendamento prévio), e seguirá em cartaz até 27 de julho.
A partir de 15 de junho, com a realização de uma visita guiada pela artista, a RV Cultura e Arte apresenta Das coisas que a terra não come, expo-cápsula da artista baiana Milena Ferreira, com texto crítico de João Victor Guimarães.
O projeto apresenta três séries inéditas que Milena tem desenvolvido no contexto de sua pesquisa de mestrado e, mais recentemente, durante residência artística na Zona Fluxos, em Salvador. As obras, além de trazerem o chão como interesse discursivo central, estabelecendo uma ideia de fundação/fundamento, reafirmam uma prática gráfica como núcleo da produção da artista e partem de seu interesse pela estética da ruína como lugar de memória e pertencimento no cenário urbano.
Entre os trabalhos, a série que dá nome a exposição, “Das coisas que a terra não come”, composta por 20 objetos em cimento queimado (uma mistura de cimento, areia e pó xadrez), investiga a gravura e sua capacidade expansiva enquanto linguagem artística, discutindo sobre as relações entre moldagem, impressão, espacialidade e reminiscência. “Das coisas que a terra não come, nasce da captação das formas de brinquedos da minha infância, e faz referência ao dito popular “se fosse bom a terra comia”, onde inverto os valores de bom e ruim, trazendo marcas de objetos que não se apresentam materialmente, mas seguem ali, impregnadas, refletindo sobre a tridimensionalidade gráfica” analisa Milena.
As outras duas séries incluídas no projeto - “Tropeço”, uma coleção de matrizes de água-tinta que aludem as formas e texturas das pedras e “Vi, mas não lembro”, um desenho em carvão sobre papel no qual Milena explora tessituras de um terreno rochoso – apontam ainda para um momento de pesquisa em que a artista, além de recorrer a suas memórias, passa a lidar com questões que envolvem “o outro” em sua produção. “Um fator raro e que torna os trabalhos de Milena Ferreira absolutamente relevantes é a sua capacidade de construir e causar impacto com obras que, embora fruto de uma vivência pessoal, não dependem do relato da autora. Não se trata de ensaiar universalidade, mas sim de saber o que revelar e o que resguardar a fim de fortalecer a obra e sua relação com os públicos", comenta em seu texto o curador e crítico de arte João Victor Guimarães.
Das coisas que a terra não come será aberta ao público com uma visita guiada pela própria artista no sábado, dia 15 de junho, às 10:30 (atividade gratuita e aberta, não é necessário agendamento prévio), e seguirá em cartaz até 27 de julho.
Texto crítico
Ruínas da memória, pó do porvir
A memória pode ser entendida como um conjunto de imagens que constituem o sentido daquilo que não mais se vê. A infância, como marca indelével, se sustenta além do tempo, de forma que suas imagens se repetem em gestos, cores, aromas, texturas e palavras. Essas marcas não são escolhidas por nós porque existem em razão da relação que temos com o mundo. Denotam como o mundo nos fez. O mesmo ativa essas marcas e memórias. Na relação entre o indivíduo, os espaços e tempos que o fundam, se desenha a atual pesquisa de Milena Ferreira, artista visual soteropolitana.
Logo no início da sua trajetória artística, Milena voltou-se às ruínas do Centro Histórico de Salvador, região onde viveu e por onde transitou desde a sua infância, muitas vezes com seu pai, que é projetista. Durante sua pesquisa sobre ruínas, a artista chegou à conclusão de que as construções vivem, sofrem e vivem novamente quando estão desfalecendo. Temos uma noção de tempo espiralar na relação com a vida e a morte, porque a memória também é uma morte, algo de inacessível durante a nossa vida.
Quando Milena ainda apresentava seus trabalhos em feiras, o contato direto com o público lhe revelara a dimensão coletiva das memórias que seus trabalhos sempre despertavam e seguem despertando. Ali já se percebia a imensa população que reside nas memórias das ruínas, no vazio das casas.
Sua pesquisa inicial passa pelo desenho e se desdobra na gravura e suas diversas formas de execução: litografia, xilografia, serigrafia, calcografia… Milena Ferreira define a gravura como “construção a partir da retirada de camadas. Você vai desconstruindo para construir”, afirma a artista que percebe esses processos nos vácuos e “entre-tempos” das ruínas. As construções e ambientes retomados por ela estão no limbo entre o passado e o futuro, entre a materialidade e o imaterial. De alguma forma, a gravura, entre a matriz e a impressão, sugere a mesma situação. Em ambas, ruína e gravura, o que vemos não é sua base/matriz ou sua primeira fase. Vemos um fruto de outra materialidade que não alcançamos. A gravura também é um fragmento da matriz, quiçá sua ruína. Nesse sentido, estamos diante de fragmentos cujo teor simbólico e imaginário partem de uma construção e se encontram com ecos das memórias dos corpos que transitam por um terreno geográfico ou visual compartilhado.
Há muito, Milena Ferreira acentua essa poética nas camadas técnicas e plásticas do trabalho. Na obra “Longa Vida”, por exemplo, a artista utilizou a matriz cartonada para revelar ruínas localizadas na Barroquinha. Ao utilizar um material tão acessível quanto frágil, transformou a própria matriz em uma ruína porque a mesma não suporta a pressão da impressão, não resiste às mordidas do tempo. Na série “Habitar é obra”, Ferreira mais uma vez alinha técnica à poética ao utilizar azulejos como suporte para pinturas de ações domésticas. Saindo da arquitetura, componente externo, a artista adentra o ambiente interno das casas.
A memória pode ser entendida como um conjunto de imagens que constituem o sentido daquilo que não mais se vê. A infância, como marca indelével, se sustenta além do tempo, de forma que suas imagens se repetem em gestos, cores, aromas, texturas e palavras. Essas marcas não são escolhidas por nós porque existem em razão da relação que temos com o mundo. Denotam como o mundo nos fez. O mesmo ativa essas marcas e memórias. Na relação entre o indivíduo, os espaços e tempos que o fundam, se desenha a atual pesquisa de Milena Ferreira, artista visual soteropolitana.
Logo no início da sua trajetória artística, Milena voltou-se às ruínas do Centro Histórico de Salvador, região onde viveu e por onde transitou desde a sua infância, muitas vezes com seu pai, que é projetista. Durante sua pesquisa sobre ruínas, a artista chegou à conclusão de que as construções vivem, sofrem e vivem novamente quando estão desfalecendo. Temos uma noção de tempo espiralar na relação com a vida e a morte, porque a memória também é uma morte, algo de inacessível durante a nossa vida.
Quando Milena ainda apresentava seus trabalhos em feiras, o contato direto com o público lhe revelara a dimensão coletiva das memórias que seus trabalhos sempre despertavam e seguem despertando. Ali já se percebia a imensa população que reside nas memórias das ruínas, no vazio das casas.
Sua pesquisa inicial passa pelo desenho e se desdobra na gravura e suas diversas formas de execução: litografia, xilografia, serigrafia, calcografia… Milena Ferreira define a gravura como “construção a partir da retirada de camadas. Você vai desconstruindo para construir”, afirma a artista que percebe esses processos nos vácuos e “entre-tempos” das ruínas. As construções e ambientes retomados por ela estão no limbo entre o passado e o futuro, entre a materialidade e o imaterial. De alguma forma, a gravura, entre a matriz e a impressão, sugere a mesma situação. Em ambas, ruína e gravura, o que vemos não é sua base/matriz ou sua primeira fase. Vemos um fruto de outra materialidade que não alcançamos. A gravura também é um fragmento da matriz, quiçá sua ruína. Nesse sentido, estamos diante de fragmentos cujo teor simbólico e imaginário partem de uma construção e se encontram com ecos das memórias dos corpos que transitam por um terreno geográfico ou visual compartilhado.
Há muito, Milena Ferreira acentua essa poética nas camadas técnicas e plásticas do trabalho. Na obra “Longa Vida”, por exemplo, a artista utilizou a matriz cartonada para revelar ruínas localizadas na Barroquinha. Ao utilizar um material tão acessível quanto frágil, transformou a própria matriz em uma ruína porque a mesma não suporta a pressão da impressão, não resiste às mordidas do tempo. Na série “Habitar é obra”, Ferreira mais uma vez alinha técnica à poética ao utilizar azulejos como suporte para pinturas de ações domésticas. Saindo da arquitetura, componente externo, a artista adentra o ambiente interno das casas.
Aqui, na expo-cápsula "Das coisas que a terra não come", na RV Cultura e Arte, assistimos a Milena Ferreira protagonizar um terceiro movimento: o entrelace do chão da casa ao da pessoa. A artista começa sua construção com a memória acessível do chão que um dia pisou, da casa que seu pai adornava com pedras, do terreno que sua família um dia perdeu. A partir da gravação em metal de pedras documentadas em fotos, a obra “Tropeço” nos leva a encarar os diversos mecanismos de estruturação da memória. A pedra que não existe mais como foi vista, foi acessada através de fotografias de um momento que nunca mais se repetirá. Temos uma elaboração sobre a reprodução do infinito que resulta no finito e o compõe. O chão para sempre existirá, mesmo que se altere. Contudo, o que quer que aconteça baseado nele, não terá a mesma sorte. “Vi, mas não lembro” dispensa melhor tradução desse movimento. O pó do carvão, estruturado para construção de uma forma, reproduz o que é poroso na distância da memória. O latão, embora não seja necessariamente maleável, é sensível e registra o que o atinge, assim como a infância. Através dessa prática, Milena Ferreira reelabora a inversão da finitude.
O chão de cimento queimado vermelho é uma memória comum a muitas pessoas. E embora utilizando uma matéria tão bruta, na série “Das coisas que a terra não come”, Milena nos apresenta um ensaio sobre o virtual, o impalpável que, inclusive através da expografia, flutua diante dos nossos olhos e dentro das nossas mentes. Os brinquedos da infância se transformam em matrizes que revelam o vazio das lembranças. Vemos sombras abertas a cada olhar que reentra. Há também uma ironia na tentativa de gravar em cimento ferramentas infantis porque é como tentar marcar a memória no chão de um espaço, ignorando que não só aquele espaço não existe mais para o indivíduo como o próprio indivíduo também não existe mais para naquele espaço. Se tratando de memória, morte/distância e vida/contato coexistem diante de nós. Ao mesmo tempo, buscamos novas vidas, novas relações e lugares no presente onde os fragmentos podem ser encaixados.
Milena Ferreira tem a rara capacidade de construir e causar impacto com obras que, embora tenham um fundo de vivência pessoal, não dependem da autora. Não se trata de ensaiar universalidade, mas sim de saber o que revelar e o que resguardar a fim de fortalecer a obra e sua relação com os públicos. Esse é um dos elementos que torna a sua produção absolutamente notável. Há ainda uma inegável consistência na pesquisa apresentada por Milena Ferreira porque a artista constroi sua trajetória em atos e feitos estruturados, apresentando uma pesquisa segura com destreza técnica inegável. Sua poética é de relevância e riqueza voluptuosa porque, no fundo, a artista apresenta as memórias da infância da forma que ela deseja apresentar, não da forma que as memórias se fizeram. Devemos ainda perceber com atenção e respeito a trajetória de uma artista negra que apresenta sua poética sem se expor, deixando que as pessoas sintam o que conseguem acessar. Milena Ferreira afirma e instiga a subjetividade com rara maestria provocando impactos inevitáveis.
Seja bem vinda/e/o!
Que suas memórias te acolham e preencham o espaço.
João Victor Guimarães
junho, 2024