Quase árido
Felipe Rezende, Henrique Reis, Luiz Marcelo, Mari Ra, Ronald Borges Junior e Sarah HallelujahCuradoria: Uriel Bezerra
Texto: Carlos Mélo
16/10 a 21/12/2024
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Release
A partir de 16 de outubro, às 19h, a RV Cultura e Arte apresenta Quase árido, exposição coletiva com curadoria de Uriel Bezerra que reúne os artistas Felipe Rezende, Henrique Reis, Luiz Marcelo, Mari Ra, Ronald Borges Junior e Sarah Hallelujah. A mostra convida a conhecer pesquisas que sugerem um repertório de formas, gestos e procedimentos resultantes do conjunto de interações existentes no universo complexo do interior, atravessado por tensões, compondo uma espécie de imaginação política a partir do território, lembrando a proposta de diversos movimentos sociais para a convivência com o semiárido, produzindo tecnologias próprias.
"O título Quase árido retoma seu sinônimo, o semiárido, de forma ambígua, isto é, enquanto nos remete jocosamente à iminência da transformação climática, beirando o árido, não sucumbe à escassez ou aspereza, reafirmando elementos e temas atrelados aos conflitos pela terra, a afro religiosidade, a criatividade popular, até o homoerotismo" explica Uriel Bezerra. "Não chega a ser árido, mas, há uma certa aridez. E essa certa aridez está no campo do que não pode ser dito, cujo objeto é o encontro de dois significantes, assim, os trabalhos da exposição são fissuras no real onde escapa o simbólico, como um grito da natureza", completa Carlos Mélo, artista visual e idealizador da Bienal do Barro do Brasil que participa do projeto com um texto crítico.
Dentre as obras, a dupla de pinturas sobre lona de caminhão assinadas por Felipe Rezende, “O cerco” e “O devorador de noites”, prosseguem o exercício de fabulação das práticas do artista, a partir de circunstâncias e situações reais: ambas se baseiam em fotos tiradas nos arredores da área rural da comunidade do Junco 2, situada no município de Angical, no oeste da Bahia, onde Felipe trabalhou e ocasionalmente volta a visitar. “Nessas duas pinturas se por um lado eu tento trazer outra imagem do oeste da Bahia, que normalmente é retratado como lugar seco, escasso e amarelo, mas aí trazendo um lugar verde, de fartura e bastante aparamentado tecnologicamente, por outro eu manuseio esses mesmos aparatos tecnológicos do agronegócio para bolar narrativas com os pés na cinematografia dos thrillers e dos filmes de terror”, comenta o artista.
Já Sarah Hallelujah apresenta os objetos cerâmicos da série “Espinhos”, criados a partir do interesse pela forma do carrapicho cabeça-de-carneiro (também chamado de cabeça-de-boi) com o qual a artista se encontra em uma caminhada de 55km entre Uáuá e Canudos Velho pela Caatinga. “Esses espinhos são uma busca pela forma do espaço percorrido, uma investigação quase que arqueológica - pensando em uma analogia entre os processos de produção próprios da cerâmica e a escavação – de uma estrutura que em sua essência se movimenta também. Na minha pesquisa, entendendo o caminhar como processo de construção do espaço, criado e recriado a cada ocupação, passo então a explorar essa forma, ampliar, modelar, manipular e fragmentar, produzindo peças cerâmicas e foto-performances como as apresentadas nesta exposição” explica Sarah.
Completam a mostra: vídeo e instalação de Luiz Marcelo, desdobramentos de seus ebósperformances, práticas em que pensa as negritudes sertanejas-ribeirinhas que transitam o território áspero e fértil do sertão; as geometrias abstratas de Mari Ra, entre pinturas da série “Platibandas”, que se voltam para a arquitetura vernacular e trabalhos realizados a partir de vivências das festas de rua da cidade de Olinda, PE; entalhes de Ronald BorgesJunior, carregados de influência dos mestres populares, da fauna e flora do semiárido; e as pinturas soturnas e figurativas de Henrique Reis, um universo noturno que estabelece um contraponto em relação as ideias solares e corrosivas do Caatinga, e formalmente estabelecem composições menos descritivas, mais ambíguas, que tomam como referência as câmeras de armadilha colocadas comumente no bioma para observar as atividades de bichos e plantas.
"A exposição reúne seis artistas cujas pesquisas suscitam o que Rondinelly Gomes Medeiros chamou de ‘uma imaginação política do semiárido’, ou melhor, são compostas por gestos e interações entre os corpos que ocupam esse lugar na Bahia, reafirmando repertórios simbólicos dos conflitos pela terra, da espiritualidade, das migrações forçadas e voluntárias, para dentro e para fora dessa realidade complexa." resume o curador.
Quase árido poderá ser visitada até 21 de dezembro na RV Cultura e Arte (Avenida Cardeal da Silva 158, Rio Vermelho), de segunda a sexta, das 10:00 às 18:00 e aos sábados das 10:00 às 14:00.
A partir de 16 de outubro, às 19h, a RV Cultura e Arte apresenta Quase árido, exposição coletiva com curadoria de Uriel Bezerra que reúne os artistas Felipe Rezende, Henrique Reis, Luiz Marcelo, Mari Ra, Ronald Borges Junior e Sarah Hallelujah. A mostra convida a conhecer pesquisas que sugerem um repertório de formas, gestos e procedimentos resultantes do conjunto de interações existentes no universo complexo do interior, atravessado por tensões, compondo uma espécie de imaginação política a partir do território, lembrando a proposta de diversos movimentos sociais para a convivência com o semiárido, produzindo tecnologias próprias.
"O título Quase árido retoma seu sinônimo, o semiárido, de forma ambígua, isto é, enquanto nos remete jocosamente à iminência da transformação climática, beirando o árido, não sucumbe à escassez ou aspereza, reafirmando elementos e temas atrelados aos conflitos pela terra, a afro religiosidade, a criatividade popular, até o homoerotismo" explica Uriel Bezerra. "Não chega a ser árido, mas, há uma certa aridez. E essa certa aridez está no campo do que não pode ser dito, cujo objeto é o encontro de dois significantes, assim, os trabalhos da exposição são fissuras no real onde escapa o simbólico, como um grito da natureza", completa Carlos Mélo, artista visual e idealizador da Bienal do Barro do Brasil que participa do projeto com um texto crítico.
Dentre as obras, a dupla de pinturas sobre lona de caminhão assinadas por Felipe Rezende, “O cerco” e “O devorador de noites”, prosseguem o exercício de fabulação das práticas do artista, a partir de circunstâncias e situações reais: ambas se baseiam em fotos tiradas nos arredores da área rural da comunidade do Junco 2, situada no município de Angical, no oeste da Bahia, onde Felipe trabalhou e ocasionalmente volta a visitar. “Nessas duas pinturas se por um lado eu tento trazer outra imagem do oeste da Bahia, que normalmente é retratado como lugar seco, escasso e amarelo, mas aí trazendo um lugar verde, de fartura e bastante aparamentado tecnologicamente, por outro eu manuseio esses mesmos aparatos tecnológicos do agronegócio para bolar narrativas com os pés na cinematografia dos thrillers e dos filmes de terror”, comenta o artista.
Já Sarah Hallelujah apresenta os objetos cerâmicos da série “Espinhos”, criados a partir do interesse pela forma do carrapicho cabeça-de-carneiro (também chamado de cabeça-de-boi) com o qual a artista se encontra em uma caminhada de 55km entre Uáuá e Canudos Velho pela Caatinga. “Esses espinhos são uma busca pela forma do espaço percorrido, uma investigação quase que arqueológica - pensando em uma analogia entre os processos de produção próprios da cerâmica e a escavação – de uma estrutura que em sua essência se movimenta também. Na minha pesquisa, entendendo o caminhar como processo de construção do espaço, criado e recriado a cada ocupação, passo então a explorar essa forma, ampliar, modelar, manipular e fragmentar, produzindo peças cerâmicas e foto-performances como as apresentadas nesta exposição” explica Sarah.
Completam a mostra: vídeo e instalação de Luiz Marcelo, desdobramentos de seus ebósperformances, práticas em que pensa as negritudes sertanejas-ribeirinhas que transitam o território áspero e fértil do sertão; as geometrias abstratas de Mari Ra, entre pinturas da série “Platibandas”, que se voltam para a arquitetura vernacular e trabalhos realizados a partir de vivências das festas de rua da cidade de Olinda, PE; entalhes de Ronald BorgesJunior, carregados de influência dos mestres populares, da fauna e flora do semiárido; e as pinturas soturnas e figurativas de Henrique Reis, um universo noturno que estabelece um contraponto em relação as ideias solares e corrosivas do Caatinga, e formalmente estabelecem composições menos descritivas, mais ambíguas, que tomam como referência as câmeras de armadilha colocadas comumente no bioma para observar as atividades de bichos e plantas.
"A exposição reúne seis artistas cujas pesquisas suscitam o que Rondinelly Gomes Medeiros chamou de ‘uma imaginação política do semiárido’, ou melhor, são compostas por gestos e interações entre os corpos que ocupam esse lugar na Bahia, reafirmando repertórios simbólicos dos conflitos pela terra, da espiritualidade, das migrações forçadas e voluntárias, para dentro e para fora dessa realidade complexa." resume o curador.
Quase árido poderá ser visitada até 21 de dezembro na RV Cultura e Arte (Avenida Cardeal da Silva 158, Rio Vermelho), de segunda a sexta, das 10:00 às 18:00 e aos sábados das 10:00 às 14:00.
Texto curatorial
Nordeste, Sertão ou sua negação?
Em 2023, foi confirmada a formação de um clima árido no Brasil, resultado da ação antrópica. Para a climatologia, trata-se de uma área cujo ciclo de chuvas é praticamente ausente, conduzindo à desertificação do solo. Entre o extremo norte da Bahia e o sudoeste de Pernambuco, ocorre o início desse processo que é alertado há quase dez anos, e deve gerar impactos nas diversas esferas da vida humana e não-humana.
No campo cultural, a imagem de aridez em terras brasileiras não é exatamente uma novidade. Desde o início do século passado, a produção e circulação de representações do Nordeste - e do Sertão, consequentemente - conta com a associação redutora entre a caatinga, a seca permanente e o subdesenvolvimento. Para Durval Muniz, essa simbiose repleta de estereótipos foi de interesse das elites latifundiárias e encontraria eco até hoje na produção artística, sobretudo popular. Para o autor de “A Invenção do Nordeste”, formou-se um olhar reacionário, refratário à modernização das sociedades que habitam essa espacialidade, apelando constantemente à imagem de um passado “pré-industrial”.
Se nos detivermos na noção de Sertão desde a sua gênese, encontraremos a função de designar um Outro do discurso. Em Portugal, antes da colonização, o Sertão compreendia a população que morava nas zonas rurais mais remotas, referindo-se ao “Outro da cidade". Quando se inicia a invasão de África, adiciona-se mais uma camada de sentido, isto é, o Sertão passa a definir geograficamente o “Outro da civilização”, pois ainda é selvagem, não-domesticado, bárbaro. A fronteira que demarca essa outridade é sempre móvel, ou melhor, politicamente inventada. Quanto mais se adentra o continente a partir do ponto de vista litorâneo, bandeirante, mais adiante está o Sertão, com seus mistérios e perigos “a desbravar”. No caso das Américas, esse movimento ocorreu de leste a oeste contra as populações indígenas.
Em 2023, foi confirmada a formação de um clima árido no Brasil, resultado da ação antrópica. Para a climatologia, trata-se de uma área cujo ciclo de chuvas é praticamente ausente, conduzindo à desertificação do solo. Entre o extremo norte da Bahia e o sudoeste de Pernambuco, ocorre o início desse processo que é alertado há quase dez anos, e deve gerar impactos nas diversas esferas da vida humana e não-humana.
No campo cultural, a imagem de aridez em terras brasileiras não é exatamente uma novidade. Desde o início do século passado, a produção e circulação de representações do Nordeste - e do Sertão, consequentemente - conta com a associação redutora entre a caatinga, a seca permanente e o subdesenvolvimento. Para Durval Muniz, essa simbiose repleta de estereótipos foi de interesse das elites latifundiárias e encontraria eco até hoje na produção artística, sobretudo popular. Para o autor de “A Invenção do Nordeste”, formou-se um olhar reacionário, refratário à modernização das sociedades que habitam essa espacialidade, apelando constantemente à imagem de um passado “pré-industrial”.
Se nos detivermos na noção de Sertão desde a sua gênese, encontraremos a função de designar um Outro do discurso. Em Portugal, antes da colonização, o Sertão compreendia a população que morava nas zonas rurais mais remotas, referindo-se ao “Outro da cidade". Quando se inicia a invasão de África, adiciona-se mais uma camada de sentido, isto é, o Sertão passa a definir geograficamente o “Outro da civilização”, pois ainda é selvagem, não-domesticado, bárbaro. A fronteira que demarca essa outridade é sempre móvel, ou melhor, politicamente inventada. Quanto mais se adentra o continente a partir do ponto de vista litorâneo, bandeirante, mais adiante está o Sertão, com seus mistérios e perigos “a desbravar”. No caso das Américas, esse movimento ocorreu de leste a oeste contra as populações indígenas.
No Brasil, o Sertão foi reivindicado pelo discurso regionalista nordestino, o que fez com que partes do país, mais especificamente do Centro-Oeste e do Sudeste, deixassem de compor essa geografia. Tal operação foi legitimada pelo próprio estado brasileiro a partir da década de 1960. O sertanejo, como “tipo humano” dessa sub-região, seria caracterizado como inculto, exótico, nativo “a ser salvo de si mesmo”, atrelado de forma mórbida à paisagem seca. As artes visuais, assim como outras linguagens, seriam orientadas por essa visão programática, ajudando a nublar as reais forças produtivas e contradições que forjam esse lugar - e, se quisermos, o próprio Brasil.
No entanto, toda produção artística circunscrita ou denominada como “nordestina” ou “sertaneja” seria um elogio antimoderno, como quiseram alguns movimentos e intelectuais regionalistas? A crítica cultural que se apoia na invenção do Nordeste - e por extensão, do Sertão - nos auxiliará a olhar a diversidade e complexidade da produção que se origina por aqui em pleno século XXI? Se sim, corremos o risco de considerar a modernidade como um “bem em si” e homogeneizar o olhar sobre uma produção artística, regionalizando-a, seja por referenciar a caatinga, suas materialidades e formas, ou mesmo por estabelecer uma crítica ao progresso, por vezes legítima. Foi a partir dessas questões críticas que surgiu essa proposta de exposição coletiva.
O “quase” como caminho
A exposição coletiva “quase árido” apresenta pesquisas desenvolvidas recentemente por Felipe Rezende, Henrique Reis, Luiz Marcelo, Mari Ra, Ronald Borges Junior e Sarah Hallelujah, artistas cujas trajetórias e produção atravessaram ou foram atravessadas pelo interior da Bahia, pela diáspora nordestina, ou pelo próprio semiárido. Mas o que levou ao “quase árido”? Qual a diferença em relação ao seu sinônimo?
Cobrindo pouco mais de dez por cento do território nacional, do norte de Minas Gerais ao Rio Grande do Norte, o semiárido brasileiro é densamente povoado e caracteriza-se, a princípio, pelo regime espaçado de chuvas, grandes variações climáticas em seu interior, além de abrigar o bioma complexo da caatinga. Do ponto de vista da linguagem, a noção de semiárido ainda não designa uma cesura que separa o território entre um suposto “Nós”, que vem do litoral, e um “Outro” exótico que se esconde dentro do continente, no “Brasil profundo”.
No entanto, toda produção artística circunscrita ou denominada como “nordestina” ou “sertaneja” seria um elogio antimoderno, como quiseram alguns movimentos e intelectuais regionalistas? A crítica cultural que se apoia na invenção do Nordeste - e por extensão, do Sertão - nos auxiliará a olhar a diversidade e complexidade da produção que se origina por aqui em pleno século XXI? Se sim, corremos o risco de considerar a modernidade como um “bem em si” e homogeneizar o olhar sobre uma produção artística, regionalizando-a, seja por referenciar a caatinga, suas materialidades e formas, ou mesmo por estabelecer uma crítica ao progresso, por vezes legítima. Foi a partir dessas questões críticas que surgiu essa proposta de exposição coletiva.
O “quase” como caminho
A exposição coletiva “quase árido” apresenta pesquisas desenvolvidas recentemente por Felipe Rezende, Henrique Reis, Luiz Marcelo, Mari Ra, Ronald Borges Junior e Sarah Hallelujah, artistas cujas trajetórias e produção atravessaram ou foram atravessadas pelo interior da Bahia, pela diáspora nordestina, ou pelo próprio semiárido. Mas o que levou ao “quase árido”? Qual a diferença em relação ao seu sinônimo?
Cobrindo pouco mais de dez por cento do território nacional, do norte de Minas Gerais ao Rio Grande do Norte, o semiárido brasileiro é densamente povoado e caracteriza-se, a princípio, pelo regime espaçado de chuvas, grandes variações climáticas em seu interior, além de abrigar o bioma complexo da caatinga. Do ponto de vista da linguagem, a noção de semiárido ainda não designa uma cesura que separa o território entre um suposto “Nós”, que vem do litoral, e um “Outro” exótico que se esconde dentro do continente, no “Brasil profundo”.
Para os movimentos de luta camponesa, povos tradicionais e outras entidades que habitam esse universo, a convivência tornou-se traço fundamental da sua experiência com o semiárido. A seca, por exemplo, não é encarada como um problema a ser resolvido, tal como no século passado, mas um fenômeno com o qual se convive através do desenvolvimento de tecnologias adequadas à essa realidade, pactuada com aqueles que dela fazem parte. Essa postura radical de convívio é semelhante ao que Rondinelly Gomes Medeiros chamou de “quase-aridez”, ou seja, uma imaginação política construída a partir do semiárido.
Diante da exposição, as obras acenam a uma relação com a natureza, seja por meio dos materiais, procedimentos ou da imagem, porém, esse diálogo parece ecoar conflitos contra os esforços de domesticação do espaço, cada vez mais presentes, seja por meio da agricultura e indústria modernas, das forças de segurança do estado, dos dispositivos vigilância ou da negação dos saberes afro religiosos. Essa sensação oscila com maior ou menor força entre as obras.
Ao tratar a noção de um ”quase árido”, gostaríamos de convidar o público a ampliar e atualizar modos de ver a produção que ocupa o espaço da galeria RV. O “quase” é facilmente associado ao desdobramento da intervenção humana sobre o clima que contaminou o noticiário, mas aqui remonta principalmente às diferentes maneiras destes seis artistas trabalharem seus contextos, seja a partir das materialidades, dos diferentes modos de fazer e/ou dos seus repertórios de imagem.
Uriel Bezerra
REFERÊNCIAS
MEDEIROS, Rondinelly Gomes. “Mundo quase árido”. Os mil nomes de Gaia: do. Antropoceno à Idade da Terra. Rio de Janeiro, setembro de 2014.
MELO, F. D.; ROCHA, T. B. T. da. “O sertão é uma palavra que designa sempre o outro”: entrevista com Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Revista Historiar, [S. l.], v. 13, n. 24, p. 308–327, 2021. Disponível em: //historiar.uvanet.br/index.php/1/article/view/423. Acesso em: 15 out. 2024.
Diante da exposição, as obras acenam a uma relação com a natureza, seja por meio dos materiais, procedimentos ou da imagem, porém, esse diálogo parece ecoar conflitos contra os esforços de domesticação do espaço, cada vez mais presentes, seja por meio da agricultura e indústria modernas, das forças de segurança do estado, dos dispositivos vigilância ou da negação dos saberes afro religiosos. Essa sensação oscila com maior ou menor força entre as obras.
Ao tratar a noção de um ”quase árido”, gostaríamos de convidar o público a ampliar e atualizar modos de ver a produção que ocupa o espaço da galeria RV. O “quase” é facilmente associado ao desdobramento da intervenção humana sobre o clima que contaminou o noticiário, mas aqui remonta principalmente às diferentes maneiras destes seis artistas trabalharem seus contextos, seja a partir das materialidades, dos diferentes modos de fazer e/ou dos seus repertórios de imagem.
Uriel Bezerra
REFERÊNCIAS
MEDEIROS, Rondinelly Gomes. “Mundo quase árido”. Os mil nomes de Gaia: do. Antropoceno à Idade da Terra. Rio de Janeiro, setembro de 2014.
MELO, F. D.; ROCHA, T. B. T. da. “O sertão é uma palavra que designa sempre o outro”: entrevista com Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Revista Historiar, [S. l.], v. 13, n. 24, p. 308–327, 2021. Disponível em: //historiar.uvanet.br/index.php/1/article/view/423. Acesso em: 15 out. 2024.
Texto
Quase Nordeste
...é no “quase” que significantes se encontram e axiomas são desafiados.
Q_N fala das complexidades e nuances que compõem a identidade de uma região inventada. Aqui, fazendo uma “intervenção” no texto curatorial da exposição “quase árido”, de Uriel Bezerra, refere-se ao “between”, aquilo que fica entre uma coisa e outra, cuja potência desse campo é provocar furos no real.
Uma geografia outra, cujas bordas rarefeitas apontam para aquilo que o discurso dominante tende a foracluir — termo psicanalítico que descreve a exclusão de uma experiência ou conceito da consciência. Nesse contexto, a arte assume o papel de resgatar o que foi relegado ao inconsciente cultural, abrindo espaço para a expressão de vozes e histórias silenciadas ou marginalizadas pela tentativa de homogeneização. Q_N pode ser interpretado por uma lente que explora os processos de formação e transformação da identidade. Ao evocar a ideia do "quase", remete ao conceito de um estado liminar, um lugar de transição que se posiciona entre o ser e o tornar-se, entre o conhecido e o desconhecido, entre conteúdo e continente, revelando um sujeito em constante desubjetivação. É nesse espaço de ambiguidade que o inconsciente se manifesta, desafiando as narrativas estabelecidas e criando novas possibilidades, dissidências e reinvenções.
...é no “quase” que significantes se encontram e axiomas são desafiados.
Q_N fala das complexidades e nuances que compõem a identidade de uma região inventada. Aqui, fazendo uma “intervenção” no texto curatorial da exposição “quase árido”, de Uriel Bezerra, refere-se ao “between”, aquilo que fica entre uma coisa e outra, cuja potência desse campo é provocar furos no real.
Uma geografia outra, cujas bordas rarefeitas apontam para aquilo que o discurso dominante tende a foracluir — termo psicanalítico que descreve a exclusão de uma experiência ou conceito da consciência. Nesse contexto, a arte assume o papel de resgatar o que foi relegado ao inconsciente cultural, abrindo espaço para a expressão de vozes e histórias silenciadas ou marginalizadas pela tentativa de homogeneização. Q_N pode ser interpretado por uma lente que explora os processos de formação e transformação da identidade. Ao evocar a ideia do "quase", remete ao conceito de um estado liminar, um lugar de transição que se posiciona entre o ser e o tornar-se, entre o conhecido e o desconhecido, entre conteúdo e continente, revelando um sujeito em constante desubjetivação. É nesse espaço de ambiguidade que o inconsciente se manifesta, desafiando as narrativas estabelecidas e criando novas possibilidades, dissidências e reinvenções.
O grito môco da natureza
Em constante fluxo e permeados por conflitos e contradições, o sujeito e a natureza são uma dobradiça cuja flexão emite um som. O "grito da natureza", que também pode ser lido como uma manifestação do Real lacaniano, é aquilo que insiste e retorna, mas que não pode ser plenamente simbolizado ou integrado ao campo do discurso, a menos que escape ao real vivo. É a insistência de uma dimensão inconsciente que está sempre além do alcance do simbólico e do imaginário, que marca a tensão entre o que se pode representar e o que está para além da representação, demarcando o território da Arte. Na exploração dessas tensões, a produção artística atual desafia certezas e fronteiras, revelando que o "real" é apenas um fragmento de uma realidade mais ampla, permeada por interstícios, silêncios, abismos e incertezas.
O grito do "quase árido" é o grito da fronteira, como o quasar que expande o espaço. As obras expostas recorrem às forças ancestrais para narrativas do presente, como quem escapa das tentativas de controle. Assim, a natureza torna-se uma metáfora do inconsciente, lembrança do que foi esquecido e que retorna como reivindicação de um espaço-tempo de uma natureza outra: a subjetiva. Ou seja, os atravessamentos das questões tratadas nas obras pertencem às bordas rarefeitas dessa “desnatureza”.
Em constante fluxo e permeados por conflitos e contradições, o sujeito e a natureza são uma dobradiça cuja flexão emite um som. O "grito da natureza", que também pode ser lido como uma manifestação do Real lacaniano, é aquilo que insiste e retorna, mas que não pode ser plenamente simbolizado ou integrado ao campo do discurso, a menos que escape ao real vivo. É a insistência de uma dimensão inconsciente que está sempre além do alcance do simbólico e do imaginário, que marca a tensão entre o que se pode representar e o que está para além da representação, demarcando o território da Arte. Na exploração dessas tensões, a produção artística atual desafia certezas e fronteiras, revelando que o "real" é apenas um fragmento de uma realidade mais ampla, permeada por interstícios, silêncios, abismos e incertezas.
O grito do "quase árido" é o grito da fronteira, como o quasar que expande o espaço. As obras expostas recorrem às forças ancestrais para narrativas do presente, como quem escapa das tentativas de controle. Assim, a natureza torna-se uma metáfora do inconsciente, lembrança do que foi esquecido e que retorna como reivindicação de um espaço-tempo de uma natureza outra: a subjetiva. Ou seja, os atravessamentos das questões tratadas nas obras pertencem às bordas rarefeitas dessa “desnatureza”.
Um quasar pulsando
A aridez, mais que ausência e secura, é um campo de pulsação e dilatação. É o espaço do encontro entre dois significantes que não se completam, mas que, ao se confrontarem, criam rachaduras, mas não quebram. É por essas fissuras que o invisível e o inaudito encontram passagem, expondo aquilo que não pode ser plenamente representado, mas que pulsa e insiste.
A exposição “quase árido” é, assim, um convite para habitar esse espaço supermassivo, para atravessar a aridez e ouvir os “ecos-môcos” do que resiste à captura pelo simbólico. Q_N é uma barragem daquilo que, ao não se submeter à palavra nem à imagem, revela as potências escondidas da existência do não dito ou do ponto cego, interrompendo a percepção para iluminar outras questões e quem sabe reflorestar novos campos de aridezes e nordestes.
Carlos Mélo
A aridez, mais que ausência e secura, é um campo de pulsação e dilatação. É o espaço do encontro entre dois significantes que não se completam, mas que, ao se confrontarem, criam rachaduras, mas não quebram. É por essas fissuras que o invisível e o inaudito encontram passagem, expondo aquilo que não pode ser plenamente representado, mas que pulsa e insiste.
A exposição “quase árido” é, assim, um convite para habitar esse espaço supermassivo, para atravessar a aridez e ouvir os “ecos-môcos” do que resiste à captura pelo simbólico. Q_N é uma barragem daquilo que, ao não se submeter à palavra nem à imagem, revela as potências escondidas da existência do não dito ou do ponto cego, interrompendo a percepção para iluminar outras questões e quem sabe reflorestar novos campos de aridezes e nordestes.
Carlos Mélo