Waia’mu
Lia Cunha e João Milet MeirellesTexto crítico: Ayrson Heráclito
15/06 a 24/08/2024
Release
A partir de 24 de julho, às 19h, a RV Cultura e Arte apresenta Waia’mu, expo-cápsula dos artistas baianos Lia Cunha e João Milet Meirelles, com texto crítico de Ayrson Heráclito.
Waia’mu é um projeto que navega entre os territórios da imagem e do som, e vem sendo desenvolvido desde 2022, quando Lia e João estiveram na residência artística do Instituto Sacatar, na Ilha de Itaparica (BA). Composta como um exercício em antropologia especulativa, uma brincadeira perspectivista que propõe semear questões como “Como estabelecer diálogos com os seres criativos da mata? Como pensar o mundo a partir de entes outros-que-humanos?”, a pesquisa busca reformular noções de corpo/comunidade e desmontar a ideia de humanidade no antropoceno através de fabulações na figura do Guaiamum - caranguejo escuro azulado referenciado pelo termo tupi waia’mu.
“Na proposta desses artistas, o grande caranguejo azul, o Guiamum - ser habitante dos pântanos originários (mangues), anteriores à vida humana na terra - é tomado como ponto de partida para se pensar as formas de vida alternativas às políticas ecocidas do antropoceno. Tentando desconstruir preconceitos epistemicidas com as populações originárias, bem como compreendendo a ideia de sabedoria ancestral para além de um atributo essencialmente humano, a presente proposta pode ser lida como giro decolonial, uma subversão do corpo-mata, onde falsas hierarquias e assimetrias de conhecimento do mundo são postas em xeque”, escreve em seu texto Ayrson Heráclito, ogã, professor da UFRB, artista visual e curador.
Partindo da prática estética e reflexiva da caminhada, a dupla se propôs a fazer gravações de áudio em campo e registros gráficos a partir de derivas pela Ilha, que então se desdobraram primeiramente em fotografias e desenhos, em seguida em experimentos em cianotipia e finalmente em um livro de artista e um álbum musical, trabalhos que, em última instância, selam a nova colaboração entre os dois, ao mesmo tempo em que reforçam interesses e processos pessoais.
“A exposição aborda como as interações com outras espécies e seres imaginados pode nos ajudar a transcender padrões humanos tradicionais e a criar novos modos de vida baseados em referenciais distintos. "Waia’mu - jeito de corpo" é um exercício nesta direção. É um livro-objeto com miolo em cianotipia e capas de cerâmica, composto a partir de uma fotoperformance desenvolvida durante nossa residência artística. A proposta é se aproximar da perspectiva dos Guaiamuns, aprender suas coreografias, e explorar formas alternativas de habitar o mundo” comenta Lia.
"Já o álbum musical Waia’mu é uma obra que emerge das paisagens sonoras da Ilha de Itaparica. Este álbum em vinil foi criado a partir de gravações de campo, capturando texturas sonoras, soundscapese depoimentos. Cada faixa incorpora sons ambientes e falas dos moradores locais, que, em suas narrativas, revelam a relação com o mais-que-humano, especialmente o guaiamum", completa João.
Waia’mu tem abertura dia 24 de julho, às 19h, e apresenta ainda uma performance inédita dos artistas, desenvolvida especialmente para a ocasião, a partir do álbum sonoro (atividade gratuita e aberta ao público, sem necessidade de agendamento prévio). A expo-cápsula seguirá em cartaz até 24 de agosto.
A partir de 24 de julho, às 19h, a RV Cultura e Arte apresenta Waia’mu, expo-cápsula dos artistas baianos Lia Cunha e João Milet Meirelles, com texto crítico de Ayrson Heráclito.
Waia’mu é um projeto que navega entre os territórios da imagem e do som, e vem sendo desenvolvido desde 2022, quando Lia e João estiveram na residência artística do Instituto Sacatar, na Ilha de Itaparica (BA). Composta como um exercício em antropologia especulativa, uma brincadeira perspectivista que propõe semear questões como “Como estabelecer diálogos com os seres criativos da mata? Como pensar o mundo a partir de entes outros-que-humanos?”, a pesquisa busca reformular noções de corpo/comunidade e desmontar a ideia de humanidade no antropoceno através de fabulações na figura do Guaiamum - caranguejo escuro azulado referenciado pelo termo tupi waia’mu.
“Na proposta desses artistas, o grande caranguejo azul, o Guiamum - ser habitante dos pântanos originários (mangues), anteriores à vida humana na terra - é tomado como ponto de partida para se pensar as formas de vida alternativas às políticas ecocidas do antropoceno. Tentando desconstruir preconceitos epistemicidas com as populações originárias, bem como compreendendo a ideia de sabedoria ancestral para além de um atributo essencialmente humano, a presente proposta pode ser lida como giro decolonial, uma subversão do corpo-mata, onde falsas hierarquias e assimetrias de conhecimento do mundo são postas em xeque”, escreve em seu texto Ayrson Heráclito, ogã, professor da UFRB, artista visual e curador.
Partindo da prática estética e reflexiva da caminhada, a dupla se propôs a fazer gravações de áudio em campo e registros gráficos a partir de derivas pela Ilha, que então se desdobraram primeiramente em fotografias e desenhos, em seguida em experimentos em cianotipia e finalmente em um livro de artista e um álbum musical, trabalhos que, em última instância, selam a nova colaboração entre os dois, ao mesmo tempo em que reforçam interesses e processos pessoais.
“A exposição aborda como as interações com outras espécies e seres imaginados pode nos ajudar a transcender padrões humanos tradicionais e a criar novos modos de vida baseados em referenciais distintos. "Waia’mu - jeito de corpo" é um exercício nesta direção. É um livro-objeto com miolo em cianotipia e capas de cerâmica, composto a partir de uma fotoperformance desenvolvida durante nossa residência artística. A proposta é se aproximar da perspectiva dos Guaiamuns, aprender suas coreografias, e explorar formas alternativas de habitar o mundo” comenta Lia.
"Já o álbum musical Waia’mu é uma obra que emerge das paisagens sonoras da Ilha de Itaparica. Este álbum em vinil foi criado a partir de gravações de campo, capturando texturas sonoras, soundscapese depoimentos. Cada faixa incorpora sons ambientes e falas dos moradores locais, que, em suas narrativas, revelam a relação com o mais-que-humano, especialmente o guaiamum", completa João.
Waia’mu tem abertura dia 24 de julho, às 19h, e apresenta ainda uma performance inédita dos artistas, desenvolvida especialmente para a ocasião, a partir do álbum sonoro (atividade gratuita e aberta ao público, sem necessidade de agendamento prévio). A expo-cápsula seguirá em cartaz até 24 de agosto.
Texto crítico
O projeto Waia’mu é uma fabulação artística singular de Lia Cunha e João Milet Meirelles. Na proposta desses artistas para a exposição na RV Cultura e Arte, o grande caranguejo azul, o Guaiamum - ser habitante dos pântanos originários (mangues) anteriores à vida humana na terra - é tomado como ponto de partida para se pensar as formas de vida alternativas às políticas ecocidas do antropoceno. Tentando desconstruir preconceitos epistemicidas com as populações originárias, bem como compreendendo a ideia de sabedoria ancestral para além de um atributo essencialmente humano, a presente proposta pode ser lida como giro decolonial, uma subversão do corpo-mata, onde falsas hierarquias e assimetrias de conhecimento/entendimento do mundo são postas em xeque.
Para as cosmogonias Jeje/Nagô, o retorno à lama primordial é uma experiência necessária a todos os seres vivos. Aliás, foi com essa matéria orgânica, cedida a Orunmilá pela grande mãe Nanã, que os Oris (cabeças) foram esculpidos. O pântano, para essas culturas, como foi atestado posteriormente pela ciência ocidental, é o próprio berço da vida.
Nas cosmogonias indígenas, o pântano e seus seres também ocupam lugar de destaque. Encontramos entre os mitos da cultura Tremembé a figura do belo príncipe Lupã, que era a encarnação do caranguejo que se entregava à vida mundana e aos prazeres da carne.
Na ilha de Itaparica, local onde se deram as fabulações deste projeto, há uma forte confluência das sensibilidades afro-indígenas. Nesses locais os guaiamuns, caranguejos e demais crustáceos, estão sendo ameaçados de extinção em seus habitats, os mangues. A ação da pesca predatória e da desequilibrada criação de fazendas de viveiros aquáticos, vem provocando uma nociva transformação em todo o ecossistema.
Para as cosmogonias Jeje/Nagô, o retorno à lama primordial é uma experiência necessária a todos os seres vivos. Aliás, foi com essa matéria orgânica, cedida a Orunmilá pela grande mãe Nanã, que os Oris (cabeças) foram esculpidos. O pântano, para essas culturas, como foi atestado posteriormente pela ciência ocidental, é o próprio berço da vida.
Nas cosmogonias indígenas, o pântano e seus seres também ocupam lugar de destaque. Encontramos entre os mitos da cultura Tremembé a figura do belo príncipe Lupã, que era a encarnação do caranguejo que se entregava à vida mundana e aos prazeres da carne.
Na ilha de Itaparica, local onde se deram as fabulações deste projeto, há uma forte confluência das sensibilidades afro-indígenas. Nesses locais os guaiamuns, caranguejos e demais crustáceos, estão sendo ameaçados de extinção em seus habitats, os mangues. A ação da pesca predatória e da desequilibrada criação de fazendas de viveiros aquáticos, vem provocando uma nociva transformação em todo o ecossistema.
A intervenção dos artistas chama atenção para que voltemos aos mangues, para aprendermos com a sua sabedoria ancestral, suas tecnologias, suas interações cósmicas, a fim de construirmos formas mais sustentáveis de viver no planeta terra, longe do delírio apocalíptico do antropoceno.
A opção pela simplicidade e sustentabilidade das técnicas e dos processos de produção das obras, como a manufatura do livro de artista, a produção marginal de um disco e a revelação de impressões fotográficas utilizando a cianotipia, estão totalmente harmonizados com o meio ambiente. Esses cuidados nos remetem a modos de vida alternativos, nos lembrando as opções estético-político da permacultura. A obra dos artistas parece ganhar significações, em toda a sua extensão, quando compreendida enquanto compromisso ecológico.
Há uma predominância da cor azul nas obras, como um signo que nos remete a ancestralidade dos guaiamuns. Com o seu mito podemos aprender sobre o movimento do caos da lama ao cosmo do firmamento.
Viva o viver waia’mu.
Ayrson Heráclito
A opção pela simplicidade e sustentabilidade das técnicas e dos processos de produção das obras, como a manufatura do livro de artista, a produção marginal de um disco e a revelação de impressões fotográficas utilizando a cianotipia, estão totalmente harmonizados com o meio ambiente. Esses cuidados nos remetem a modos de vida alternativos, nos lembrando as opções estético-político da permacultura. A obra dos artistas parece ganhar significações, em toda a sua extensão, quando compreendida enquanto compromisso ecológico.
Há uma predominância da cor azul nas obras, como um signo que nos remete a ancestralidade dos guaiamuns. Com o seu mito podemos aprender sobre o movimento do caos da lama ao cosmo do firmamento.
Viva o viver waia’mu.
Ayrson Heráclito