Yuca

Rômolo D’Hipólito
Texto crítico: Tálisson Melo
10/04 a 18/05/2024


Release

A partir de 10 de abril, às 19h, a RV Cultura e Arte apresenta YUCA, exposição individual de Rômolo, com texto crítico de Tálisson Melo.

A mostra dá sequência ao trabalho do artista que parte da noção de caderno de viagem como uma narrativa sobre a experiência de ir ao encontro do outro e de si mesmo. Nesta ocasião, a partir de viagens pela Amazônia e ainda impregnado de experiências vividas durante visitas e residências em países como Bolívia, Peru, México e Guatemala, e das referências estéticas daqueles territórios, notadamente das cerâmicas e da produção têxtil, Rômolo expõe trabalhos que aludem a representação do barro (terra) e dos alimentos que são raízes, principalmente a mandioca, macaxeira, aipim ou YUCA, como é conhecida na Mesoamérica.

“As primeiras obras que surgem para esse projeto, algumas esculturas em cerâmica, ainda estão ligadas a um interesse pela figura humana, pelo antropomorfismo, e são um momento de transição na pesquisa. Elas ainda trazem elementos gráficos que ao longo dos anos foram se retroalimentando, de uma forma autofágica. Ao mesmo tempo, em alguns objetos de cerâmica sonora, busco romper o limite material da terra a partir do som, através da manipulação das peças, e com o uso de pequenas produções têxteis aliadas às cerâmicas vou introduzindo composições mais abstratas, composições que mais tarde, em obras bidimensionais, vão aparecer com mais frequência”, comenta o artista.

Entre essas as obras, a série “Liames” traz colagens e pinturas, incluindo duas telas em grande formato que exploram a ideia de solo e as tramas nele geradas pelas raízes. O ponto de partida das composições se instala nas linhas e traços de uma representação quase figurativa do assunto que então derivam em outras abstrações. “Hoje, as pinturas e colagens de Rômolo vão se distanciando da figuração antropomórfica — ainda que com resquícios de seus sonhos antigos —, e se lançam em um rumo abstratizante sensível e vigoroso, contagiando também suas cerâmicas e tecidos”, resume o pesquisador e curador Tálisson Melo.

YUCA também celebra o interesse do artista em estabelecer diálogos entre as tradições e a diversidade cultural de diferentes territórios, ao mesmo tempo em que tensiona questões relacionadas à própria identidade brasileira, problematizando o pertencimento do país dentre o que se convencionou chamar de América Latina, tema caro no contexto da arte contemporânea nacional. “Nesse mundo de sonhos que deriva de sua fixação sobre as trajetórias da yuca pelos territórios centro e sul-americanos, há ainda espaço para ressignificar os ícones ‘mais baratos’ das identidades nacionais que impõem suas fronteiras (ora mais duras, ora mais porosas), nos imaginários do que somos e podemos ser”, finaliza Melo.

YUCA poderá ser visitada até 18 de maio gratuitamente na galeria RV Cultura e Arte - de segunda a sexta, das 10:00 às 18:00 e aos sábados das 10:00 às 14:00.


Texto crítico

“Acho que vocês deveriam sonhar a terra,
pois ela tem coração e respira.”
Davi Kopenawa, entrevista a F. Watson, 1992


Nas palavras do xamã yanomami Davi Kopenawa que compõem o livro A queda do céu, o sonho é uma experiência de aprendizado e apreensão de mundos, de diferentes formas de ver, compreender, sentir e viver. Para ele, os brancos cultivaram uma forma exclusiva de sonhar consigo mesmo, inviabilizando seu contato integrado com a floresta, com a terra e o céu.

Rômolo D’Hipólito se propõe alimentar nossos sonhos para além de si mesmo, de nós, buscando na terra, nas plantas e florestas um repertório de cores, texturas e formas que se abra e se desdobre em outros mundos. Em sua última exposição individual, Pequeno retorno à terra, convidou a acompanhar seu olhar de busca à origem na terra, mostrando como sua produção artística está imbricada em sua condição de itinerância — com viagens que lhe possibilitaram imersões em contextos geográfico-culturais distintos, aproximando Foz do Iguaçu a Tisserdmine, no Marrocos, e Yangshuo, na China, passando também por Oaxaca, no México.

Agora, com um conjunto mais recente de obras, (es)colhe a mandioca como uma espécie de portal para sonhar outras vidas, sair de si mesmo através do aprendizado com os contextos locais centro e sul-americanos, onde esse alimento se difundiu e se transformou de várias maneiras. A mandioca, também chamada de aipim e macaxeira no Brasil, vindo do guarani mandi’o ou manji’o, recebe outros nomes a depender do território: yuca nomeia o tubérculo em países como Equador, Guatemala e México. Sua ampla difusão, ao longo de séculos de cultivo, promoveu grande diversidade genética e das formas de seu emprego nas culturas de vários povos originários.

Nas pinturas da série “Retornos” e na escultura “Ode”, por exemplo, há uma (con)fusão entre mãos, pés, pernas, dedos, raízes, galhos e cabeças. A evocação ao corpo humano também vai se desfazendo à medida que seus sonhos se ampliam, se permitindo deslocar de si mesmo para mergulhar no solo úmido, como uma raiz que viaja e se transforma, toma outros nomes e configurações, podendo ser um cajado ou um monte de farinha, uma goma ou uma bebida fermentada. O vocabulário imagético próprio da plasticidade material e simbólica da yuca encantou Rômolo e tem o levado a projetar imagens de um universo onírico no qual essas raízes reverberam como extensões de corpos, utensílios, paisagens e relações. Nesse mundo, um outro país é possível, com outras bandeiras e estandartes para outras festas e batalhas. É o que vejo no estandarte de tecido, corpo-espaço-paisagem dá lugar a simbologias incertas, conversões entre signos familiares e estranhos, talvez vindos de sonhos e viagens do artista.

A diversidade da mandioca, para além de seu nome, genética e formas de uso, também aponta para camadas fundamentais da (re)construção de identidades na América Latina. Hoje, as pinturas e colagens de Rômolo vão se distanciando da figuração antropomórfica — ainda que com resquícios de seus sonhos antigos —, e se lançam em um rumo abstratizante sensível e vigoroso, contagiando também suas cerâmicas e tecidos.

Nesse mundo de sonhos que deriva de sua fixação sobre as trajetórias da yuca pelos territórios centro e sul-americanos, há ainda espaço para ressignificar os ícones “mais baratos” das identidades nacionais que impõem suas fronteiras (ora mais duras, ora mais porosas), nos imaginários do que somos e podemos ser. Em um das pinturas Retornos, o solo vibrante de cultivo e colheita da mandioca se abre em um caminho para o céu, o sol, por onde caminha um menino-divindade com seu cajado de yuca em punho erguido, vestindo um chapéu-cabeça-de-passarinho-a-cantar, sua camiseta (de um time de futebol de algum outro mundo), e seus chinelos.

Com as séries de trabalhos mais recentes, dissolvendo suas figuras antropomorfas, Rômolo alimenta a capacidade de sonhar a terra através desses tubérculos viajantes que nutrem nossos corpos e florestas. Seu anseio é trazer outros sentidos para além daqueles “dessa cultura que enfiaram na gente” — como ele mesmo diz.

O artista que retornou à terra, agora busca sonhá-la.

Tálisson Melo

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