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As gravuras de George Teles são movimento constante. Sua pesquisa poética é acurada e se aprofunda como estratégia entre a necessidade de manter fluidez na forma, e as experiências com o mundo conforme agenciadas pelas matérias que o artista coleta batendo perna, sua maneira de criar os encontros por onde transita, acessar as memórias e histórias do território que habita, entrar em relação com os corpos em suas singularidades, incluindo o seu próprio.  Os títulos das obras apresentadas aqui nos conduzem pela maneira como o movimento é gerado nesse processo com o qual o artista refaz o desenho afetivo do mundo e resolve o problema plástico: colisão, braçada e encontro são ações, interferências sequenciadas no mundo, precisam indicar seus desdobramentos, marcando suas transformações contínuas. Avesso e resíduos prolongam ainda mais a existência dos movimentos a que estão conectados, indicando o atravessamento para o outro lado do visível e do vivido e a persistência naquilo que ainda guarda como fragmentos, estilhaços, pó ou goteira, o que já esteve em outro estado.

Assim, a inscrição consciente do corpo do artista no espaço que experimenta através das matérias, cria a energia ritualizada em coreografia de uma poética dos encontros, estabelecendo zonas de acúmulos e vazios que possibilitam fluxo de forma em composição com o tempo – movimento e repouso -, flexibilidade da imagem. Aqui a estratégia é tratar a realidade não como fixação, mas como deslocamento. É esse ponto de fluidez da imagem que George acessa quando decalca as matérias na gravura, conseguindo manter na forma a energia que a gerou. É um trabalho na encruzilhada não só do corpóreo e do incorpóreo, mas do individual e do coletivo, e que possibilita a criação de territorialidades e de corpos, o que Eduard Glissant, em Poética da Relação chama de ser sendo, ou caminho caminhante, aquilo que faz do território paisagem-acontecimento [1].

O que há de abstrato no tato surge como imagem, sem perder sua opacidade, que na colonialidade, é o que permite a existência da diferença, dos corpos dissidentes, sem que sejam reduzidos às categorias de explicação da razão ocidentalizada, à transparência. A opacidade é o que permite afirmar: “Do que disser respeito à minha identidade, cuido eu” [2].
 
O decalque das coisas do mundo faz aparecer as minúcias, os murmúrios, a aspereza de grãos miúdos, os nós das linhas emaranhadas que guardam zelosos os detalhes dessa poética dos encontros. E o decalque das coisas do mundo faz aparecer o espaço. E é o espaço que diz: essa imagem é. O espaço é necessário para que se faça a arquitetura da imagem. De uma imagem que tem o direito de tudo esconder, de insinuar. Em Colisão 4, 5 e 6 o espaço branco do papel realça a cor avermelha terrosa de ferrugem, evidenciando texturas e espessuras em jogo plástico sutil entre o movimento e o repouso. A composição das formas dessa série de gravuras é um estudo detalhado e constante que podemos observar nos cadernos de processo do artista, que experimenta formas utilizando primeiro grafite e pastel oleoso sobre papel. Nas gravuras, esses estudos da forma se chocam com as matérias encontradas que necessariamente precisam ser transformadas no espaço. Metais, redes, papel, grude, placas de vidro e formas entram em colisão para que surja a imagem com potência para dar caminho [3]a um imaginário poético e político das relações.

Nos trabalhos Primeira e segunda braçada no avesso e Resíduos do oitavo encontro 1, 2 e 3 e Resíduos do nono encontro, as superfícies que acolhem os gestos se invertem na maneira como se comportam com relação à luz. Enquanto as braçadas no avesso acontecem na fundura densa do preto que engole a luz, que a contém no círculo de delicadeza e rigidez que os braços precisam pra dar propulsão ao corpo na água, sendo marcadas como algas na correnteza das águas pelo contraste do branco, os resíduos dos encontros são dispersão de luz, oco, ausência de fundo que a petração do vidro permite carregar o olhar pra detrás, pra além, pra depois do acontecimento, pro que ainda vai ser. Como George diz em Afetos da Travessia, “Aquilo que resta de um encontro é o que produz o próximo” [4].   


Priscila Miraz
março, 2024

[1] GLISSANT, Eduard. Poética da relação. Trad. Marcela Vieira; Eduardo Jorge de Oliveira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, p. 15.
[2] GLISSANT, Eduard. Poética da relação. Trad. Marcela Vieira; Eduardo Jorge de Oliveira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, p. 221. 
[3 ]Utilizamos aqui a expressão dar caminho conforme Edmilson de Almeida Pereira e Ana Kiffer o utilizam no texto do prefácio de Poética da Relação, de Eduard Glissant: “Dar caminho está na base da sabedoria oracular do candomblé. A palavra ‘odu’, que traça a leitura dos búzios, significa justamente ‘dar caminho’. Diferente da ideia de iluminação ou adivinhação do futuro, entende-se aí que o importante é nesse ser sendo da vida dar caminho ao caminhante. In: GLISSANT, Eduard. Poética da relação. Trad. Marcela Vieira; Eduardo Jorge de Oliveira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, p. 15.
[4] TELES, George. Afetos da Travessia. Conceição da Feira: Andarilha Edições, 2021, p. 134.


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