viewing room

Felipe Rezende
25/01 a 26/02/2021


Release
Neste viewing room que inaugura a programação da galeria RV Cultura e Arte em 2021, Felipe Rezende apresenta obras produzidas entre 2019 e 2020, criadas a partir de experiências e memórias de suas perambulações pelas ruas das cidades de Salvador e Barreiras.

Interessado em registrar as pessoas que via o tempo todo, em todos os lugares, Felipe reúne personagens despercebidos, a gestualidade de seus trabalhos braçais repetitivos e ainda vestígios das relações pessoais que estabeleceu com eles. Em fragmentos de piso e pedra, por exemplo, ele cria pequenas cápsulas de tempo, que registram para sempre um instante, sem sobrenome e sem localização aparentes, a materialização da invisibilidade. Já nos trabalhos em papel, como na série de 12 desenhos intitulada “O passante”, a partir de fabulações, o artista recorre a construções gráficas narrativas para provocar ruídos na imagem, enigmas, como ele mesmo chama, e convocar o espectador a uma segunda olhada, mais atenta, mais gentil. Neste sentido, a pesquisa encontra ressonância ainda na produção em si das obras, com a escolha do próprio desenho como técnica final, que deixa de ser rascunho, bastidor, dissimulado, para encontrar lugar central em suas composições narrativas.

Com texto crítico de Uriel Bezerra, o projeto tem caráter híbrido: se materializa dentro da galeria, com a montagem das obras em formato expositivo, e se completa online, onde o espectador tem acesso a fotos, vídeos e textos extras. “A ideia do viewing room não é simular a experiência presencial de visitar uma exposição na galeria, mas possibilitar de maneira diferente, virtual, que o público possa conhecer as obras e a pesquisa do artista, sem sair de casa”, explica a galerista Larissa Martina.

Texto crítico
O passante

Poucas vezes tive a oportunidade de conversar com Felipe Rezende, mas sei que alguns eventos importantes atravessam nossas trajetórias. Pertencemos às famílias de trabalhadores de classe média e a uma mesma geração, popularmente chamada de millennials, ou geração Y. Quando recém-chegados ao mercado de trabalho, fomos surpreendidos por mudanças profundas - talvez irreversíveis -, tal como a chegada dos aplicativos e a aprovação de uma reforma trabalhista há pelo menos três anos.

Como consequência, vivemos sob a regência de duplas jornadas de trabalho e múltiplas funções. No caso dele, felizmente estas se completaram. Desde o início de sua trajetória artística, Felipe encontrou no desenho um lugar privilegiado para a produção de narrativas fantásticas, grotescas e/ou satíricas, apoiando-as em imagens do cinema, do fotojornalismo e de arquivos pessoais.

Concomitante a essa prática, durante quatro anos trabalhou na manutenção e restauro de uma grande maquete de Salvador (BA), onde lidava com uma base de dados cartográfica. Nesta, a sua perspectiva das ruas, a qual incluía pessoas, objetos e modos de inventar a cidade, era sintetizada na visão vertical e estratégica de um mapa. Foi então que, a partir de 2018, passou a se dedicar a um universo que vivenciará em escala humana, o trabalho operário, sobretudo o que ocorre nas ruas.

Para a primeira exposição individual, intitulada Ladeira da Fonte (2019), apresentou uma pesquisa desenvolvida em um canteiro de obras pelo qual passava cotidianamente na capital baiana, situado no endereço que dá nome à mostra. Depois de estabelecer visitas mais prolongadas e vínculos com os trabalhadores, começou a catar os refugos da construção. Lajotas de cimento e pedaços de concreto tornaram-se suporte e parte da composição para pinturas de gestos ou objetos encontrados naquele espaço.

Ao mesmo tempo em que buscou apresentar alguns clichês, entre cones, uniformes e cavaletes, o artista também deu destaque às distensões da rotina: a pausa para o lanche, a pose para a foto, ou a volta para casa ao fim do expediente. A obsessão por essas imagens lembra a obra de Harun Farocki.
Na videoinstalação “A saída dos operários da fábrica em 11 décadas'' (2006), por exemplo, o diretor reuniu um arquivo de imagens cinematográficas que abrange mais de um século. Já em Termos de comparação, de 2007, Farocki interpõe cenas de interação entre operários da construção civil em Burkina Faso, Índia, Alemanha e França. Aqui, como na obra de Felipe, é importante perceber as nuances que aproximam e distinguem trabalhadores, bem como o olhar de quem produz as imagens.

Na série de desenhos O Passante, que acompanha também essa viewing room, Felipe Rezende dedicou-se a uma diversidade de atividades nas modalidades formal e informal. A partir de sua passagem pelas cidades de Salvador e Barreiras (BA), onde atualmente reside, apresenta situações em grafite e nanquim que extrapolam a apresentação de gestos vistos em Ladeira da Fonte, lançando mão de um recurso que lhe é familiar: a ficção. Cada uma se assemelha a um pequeno delírio, no qual parece tentar atribuir alguma ludicidade a funções pouco reconhecidas socialmente. Algumas, inclusive, poderiam ser partituras para uma performance.

O conjunto apresentado pelo soteropolitano pode gerar um incômodo, seja pela ausência de conflito, ou por não apresentar imagens de insurreições contemporâneas, tal como o movimento dos garis no Rio de Janeiro, em 2014, ao qual também se aliaram artistas e outros agentes do campo cultural; ou a greve dos entregadores de aplicativos, ocorrida em 2020. Não obstante, a escolha em se colocar ao lado dos trabalhadores mais invisibilizados - que constituem uma diversidade onde facilmente podemos reforçar seu anonimato -, seja por meio do lazer, ou pela ficção, pode ser potencialmente subversiva diante de jornadas de trabalho quase permanentes.

Dito isso, fico curioso para saber como Felipe pretende explorar outras formas de conexão com o mundo do trabalho nas ruas, intermediadas pelo desenho. Para tal, se a definição de millennials ainda nos cabe , talvez "o passante" precise ficar um pouco mais conectado com sua multidão, descobrindo as particularidades que a constituem.

Uriel Bezerra

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