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Platibandas

Mari Rá
Texto crítico: Diego Mauro
08.11 a 02.12.2023

Release

A partir de 08 de novembro, a RV Cultura e Arte apresenta não um, mas três projetos expositivos de uma só vez. Na galeria, cada artista ocupa uma parede e apresenta uma nova série de trabalho. Em comum, Isabela Seifarth, Mari Ra e Milena Ferreira trazem a pintura, além da passagem pela Escola de Belas Artes da UFBA.

Na série Contorno Brasil, Isabela Seifarth (Salvador, 1989) articula a relação de cenas de um cotidiano popular, fruto de sua pesquisa em arquivos públicos do Recôncavo Baiano, com referências iconográficas do Brasil. As composições se iniciam em uma busca simbólica por representações da nossa brasilidade - as manifestações culturais da região em que vivemos, a paixão pelo futebol, a reunião com os amigos no boteco da esquina, a hora da novela - e terminam na materialização geométrica do losango, em referência à bandeira brasileira, passando por azulejos portugueses e gravuras de Theodore de Bry.

Inaugurando sua parceria com a galeria, Mari Ra (Cotia, 1996) apresenta uma série de oito pinturas em pequeno formato intitulada Platibandas em que explora detalhes, relevos e recortes de fachadas a partir de um sintetismo pictórico próprio. Diego Mauro, curador que assina o texto do projeto completa: "Da mais pulsante vontade de diferenciação, segundo as quais as camadas populares deglutiram o moderno e os símbolos visuais ao seu redor, é que surge esse léxico inesgotável e vivo de fachadas que podem mudar de cor e composição a cada nova demão. E são essas fachadas que Mari Ra reelabora para o seu assunto preferido: a pintura".

Milena Ferreira (Salvador, 1992) dá sequência à série aberta Habitar é obra, na qual trabalha desde 2022 construindo painéis compostos por pinturas de pequenas composições diárias da organização cotidiana, ou da falta dela. Reunindo fragmentos de azulejos garimpados em diversos locais, Milena organiza polípticos em acrílica nos quais exibe sobreposições de itens do nosso dia a dia que reforçam a ideia de HABITAR o local/espaço que chamamos de CASA.  As composições coletivas, como diz Milena, surgem a partir de referências fotográficas enviadas pelos vizinhos e amigos, principalmente do Centro de Salvador, mas que se repetem em lares de todo o Brasil.

Os três projetos podem ser visitados entre os dias 08 de novembro de 02 de dezembro na galeria (Avenida Cardeal da Silva 158, Rio Vermelho) de segunda à sábado, ou pelo site www.rvculturaearte.com.


Texto crítico

Vestígio, memória e evocação na série de Mari Ra.


Palimpsesto e pátina estão intimamente relacionados à memória e à passagem do tempo. Palimpsesto refere-se a pergaminhos que eram raspados e polidos para assim receberem novas inscrições, sobretudo durante a Idade Média. A metáfora de uma sobreposição de escritas, com os seus inevitáveis vestígios, foi transposta para o contexto urbano para se referir ao acúmulo de camadas de épocas distintas, de modo que, ao se escavar uma cidade colonial como Salvador, Olinda ou Recife, é possível descobrir quais foram alguns dos usos, texturas e pavimentos que já compuseram determinado pedaço de cidade.

Pátina, por sua vez, refere-se a uma camada que recobre algo: sejam os lentos processos químicos que dotam o bronze de um tom esverdeado, ou a oxidação que resulta na ferrugem. O termo, aos poucos, foi ganhando um sentido mais amplo, ao incluir mobiliários e trabalhos de pintura com suas camadas, velaturas e outros índices da passagem do tempo. Existe, portanto, a pátina que é fruto do próprio tempo e a pátina que evoca ou simula um aspecto de ação do tempo.

Palimpsesto e pátina remetem, portanto, a acúmulos e vestígios que dotam um objeto ou a cidade de vida, de densidade histórica.

É com essa breve introdução que abordo as “Platibandas”, uma série de pinturas de Mari Ra que surgiu em 2018 ante o interesse da artista por um certo tipo de fachada, fachadas impregnadas de cor, geometria e lirismo que ela inicialmente encontrou em Recife e Olinda, quando ia visitar sua mãe, e que ela também reconheceu na Zona Leste, um dos lugares onde ela residiu em São Paulo. As fachadas em questão possuem uma planaridade marcante por contarem com platibandas, que costumam ser uma faixa horizontal que emoldura a parte superior da fachada, cuja finalidade é esconder o telhado das construções. Este elemento arquitetônico foi difundido pela Missão Artística Francesa, em 1816, e ganhou caráter compulsório em Salvador com o decreto da Lei da Bica, de 1850, cujo intuito era impedir que as águas pluviais das coberturas das casas caíssem na frente das casas, o que comprometia as calçadas e os seus transeuntes.

Com as platibandas, as fachadas de algum modo se destacam e ganham autonomia e importância em relação ao restante da edificação, e seus elementos e ornamentos podem ser atualizados, de modo que estilos e tendências vão se encobrindo pelos seus sucessores: o neoclássico propagado pelos franceses, os subsequentes eclético, art déco, neocolonial, além do próprio repertório modernismo brasileiro no século XX.

As fachadas que fascinavam Mari Ra ela passou a encontrar também em outros lugares por onde habitou ou transitou, como em Salvador e no Recôncavo Baiano, em Belém do Pará e outros lugares que receberam os afluxos da diáspora nordestina, sobretudo o dos anos 1950 e 1960, quando nordestinos de diversos estados se deslocaram para São Paulo, a capital industrial do país, carregando consigo modos de existência e formas de construir, além de serem responsáveis por erguer partes significativas das grandes cidades brasileiras.

Da mais pulsante vontade de diferenciação, segundo as quais as camadas populares deglutiram o moderno e os símbolos visuais ao seu redor, é que surge esse léxico inesgotável e vivo de fachadas que podem mudar de cor e composição a cada nova demão. E são essas fachadas que Mari Ra reelabora para o seu assunto preferido: a pintura.

Pela amplitude, frequência, intensidade, complexidade, vigor e resistência, estas fachadas são um patrimônio da cultura popular brasileira: mecanismo espontâneo de sobrevivência cultural adaptativa, mescla de tradições e aspirações, criam arquitetura doméstica, espaço cênico e paisagem urbana. Os novos padrões introduzidos pelo progresso necessário são assimilados e utilizados enquanto persistem aspectos absorvidos de estilos tradicionais, ao sabor da vontade dos mestres-pedreiros e dos moradores, exibindo a visível atemporalidade das realizações. (Anna Mariani, "Pinturas e platibandas", 1987).

A fachada de uma casa é um portal que separa o íntimo do público. Ao mesmo tempo é a forma como uma família deseja ser vista, e é também a sua contribuição para a construção de uma paisagem urbana. Pelo fato de uma fachada também possuir a acepção de “mera aparência”, decorre a expressão “isso é só fachada” quando alguém se comporta de um jeito melhor e muito distinto do que costuma ser. Fachada é, para o bem e para o mal, a melhor versão de algo ou de alguém.

A série “Platibandas” hoje conta com cerca de 20 trabalhos, tendo a primeira obra adotado a madeira como suporte, destacando um detalhe da silhueta das fachadas. Os trabalhos subsequentes da série já migraram para a tela como suporte, que Mari recobre com uma base de tinta amarela vibrante. À medida que a tinta a óleo vai se somando por meio de velaturas, a artista também lixa a pintura, recuperando camadas anteriores. Esse procedimento de pintar, remover e pintar por cima resulta em uma fatura heterogênea e desgastada, que invoca a passagem do tempo e a memória.

Assim, suas platibandas flutuam absolutas no espaço configurado pela própria parede em que se situam os trabalhos, o que traz uma dimensão metalinguística, uma espécie de parede da memória com retratos não de pessoas, mas de suas moradas inventadas, inspiradas em cidades variadas. Mari reinventa as cores em prol da pintura, propondo contrastes por oposições bem demarcadas de cor, emprestando uma nova cor ao que antes seria o céu, e uma nova textura, ao inserir à tinta a óleo um médium de cera de abelha.

As “Platibandas” de Mari Ra contam com um dado mais projetual do que os demais trabalhos da artista. Se suas demais criações costumam ser concebidas primeiramente em aquarela para depois se tornarem pinturas em maiores formatos, as suas fachadas são diminutas e advém de um esquema, quase como se fossem o estudo para detalhes, relevos e recortes a serem construídos em dimensão real.

Os elementos arquitetônicos que Mari elabora em suas pinturas atuam, assim, como sistemas de vestígio e evocação de memória, lidando não apenas com a tradição canônica da arte e arquitetura, mas sobretudo com a sua deglutição pelo popular, tornando assunto para a pintura o mundo sensível ao redor.

Diego Mauro


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