Nordeste, Sertão ou sua negação?


Em 2023, foi confirmada a formação de um clima árido no Brasil, resultado da ação antrópica. Para a climatologia, trata-se de uma área cujo ciclo de chuvas é praticamente ausente, conduzindo à desertificação do solo. Entre o extremo norte da Bahia e o sudoeste de Pernambuco, ocorre o início desse processo que é alertado há quase dez anos, e deve gerar impactos nas diversas esferas da vida humana e não-humana.

No campo cultural, a imagem de aridez em terras brasileiras não é exatamente uma novidade. Desde o início do século passado, a produção e circulação de representações do Nordeste - e do Sertão, consequentemente - conta com a associação redutora entre a caatinga, a seca permanente e o subdesenvolvimento. Para Durval Muniz, essa simbiose repleta de estereótipos foi de interesse das elites latifundiárias e encontraria eco até hoje na produção artística, sobretudo popular. Para o autor de “A Invenção do Nordeste”, formou-se um olhar reacionário, refratário à modernização das sociedades que habitam essa espacialidade, apelando constantemente à imagem de um passado “pré-industrial”.

Se nos detivermos na noção de Sertão desde a sua gênese, encontraremos a função de designar um Outro do discurso. Em Portugal, antes da colonização, o Sertão compreendia a população que morava nas zonas rurais mais remotas, referindo-se ao “Outro da cidade". Quando se inicia a invasão de África, adiciona-se mais uma camada de sentido, isto é, o Sertão passa a definir geograficamente o “Outro da civilização”, pois ainda é selvagem, não-domesticado, bárbaro. A fronteira que demarca essa outridade é sempre móvel, ou melhor, politicamente inventada. Quanto mais se adentra o continente a partir do ponto de vista litorâneo, bandeirante, mais adiante está o Sertão, com seus mistérios e perigos “a desbravar”. No caso das Américas, esse movimento ocorreu de leste a oeste contra as populações indígenas.
No Brasil, o Sertão foi reivindicado pelo discurso regionalista nordestino, o que fez com que partes do país, mais especificamente do Centro-Oeste e do Sudeste, deixassem de compor essa geografia. Tal operação foi legitimada pelo próprio estado brasileiro a partir da década de 1960. O sertanejo, como “tipo humano” dessa sub-região, seria caracterizado como inculto, exótico, nativo “a ser salvo de si mesmo”, atrelado de forma mórbida à paisagem seca. As artes visuais, assim como outras linguagens, seriam orientadas por essa visão programática, ajudando a nublar as reais forças produtivas e contradições que forjam esse lugar - e, se quisermos, o próprio Brasil.

No entanto, toda produção artística circunscrita ou denominada como “nordestina” ou “sertaneja” seria um elogio antimoderno, como quiseram alguns movimentos e intelectuais regionalistas? A crítica cultural que se apoia na invenção do Nordeste - e por extensão, do Sertão - nos auxiliará a olhar a diversidade e complexidade da produção que se origina por aqui em pleno século XXI? Se sim, corremos o risco de considerar a modernidade como um “bem em si” e homogeneizar o olhar sobre uma produção artística, regionalizando-a, seja por referenciar a caatinga, suas materialidades e formas, ou mesmo por estabelecer uma crítica ao progresso, por vezes legítima. Foi a partir dessas questões críticas que surgiu essa proposta de exposição coletiva.

O “quase” como caminho

 
A exposição coletiva “quase árido” apresenta pesquisas desenvolvidas recentemente por Felipe Rezende, Henrique Reis, Luiz Marcelo, Mari Ra, Ronald Borges Junior e Sarah Hallelujah, artistas cujas trajetórias e produção atravessaram ou foram atravessadas pelo interior da Bahia, pela diáspora nordestina, ou pelo próprio semiárido. Mas o que levou ao “quase árido”? Qual a diferença em relação ao seu sinônimo?

Cobrindo pouco mais de dez por cento do território nacional, do norte de Minas Gerais ao Rio Grande do Norte, o semiárido brasileiro é densamente povoado e caracteriza-se, a princípio, pelo regime espaçado de chuvas, grandes variações climáticas em seu interior, além de abrigar o bioma complexo da caatinga. Do ponto de vista da linguagem, a noção de semiárido ainda não designa uma cesura que separa o território entre um suposto “Nós”, que vem do litoral, e um “Outro” exótico que se esconde dentro do continente, no “Brasil profundo”.
Para os movimentos de luta camponesa, povos tradicionais e outras entidades que habitam esse universo, a convivência tornou-se traço fundamental da sua experiência com o semiárido. A seca, por exemplo, não é encarada como um problema a ser resolvido, tal como no século passado, mas um fenômeno com o qual se convive através do desenvolvimento de tecnologias adequadas à essa realidade, pactuada com aqueles que dela fazem parte. Essa postura radical de convívio é  semelhante ao que Rondinelly Gomes Medeiros chamou de “quase-aridez”, ou seja, uma imaginação política construída a partir do semiárido.

Diante da exposição, as obras acenam a uma relação com a natureza, seja por meio dos materiais, procedimentos ou da imagem, porém, esse diálogo parece ecoar conflitos contra os esforços de domesticação do espaço, cada vez mais presentes, seja por meio da agricultura e indústria modernas, das forças de segurança do estado, dos dispositivos vigilância ou da negação dos saberes afro religiosos. Essa sensação oscila com maior ou menor força entre as obras.

Ao tratar a noção de um ”quase árido”, gostaríamos de convidar o público a ampliar e atualizar modos de ver a produção que ocupa o espaço da galeria RV. O “quase” é facilmente associado ao desdobramento da intervenção humana sobre o clima que contaminou o noticiário, mas aqui remonta principalmente às diferentes maneiras destes seis artistas trabalharem seus contextos, seja a partir das materialidades, dos diferentes modos de fazer e/ou dos seus repertórios de imagem.

Uriel Bezerra




REFERÊNCIAS

MEDEIROS, Rondinelly Gomes. “Mundo quase árido”. Os mil nomes de Gaia: do. Antropoceno à Idade da Terra. Rio de Janeiro, setembro de 2014.

MELO, F. D.; ROCHA, T. B. T. da. “O sertão é uma palavra que designa sempre o outro”: entrevista com Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Revista Historiar, [S. l.], v. 13, n. 24, p. 308–327, 2021. Disponível em: //historiar.uvanet.br/index.php/1/article/view/423. Acesso em: 15 out. 2024.




XVII,
série Platibandas

MARI RA

óleo sobre tela
30x20cm
2024
XVI,
série Platibandas

MARI RA

óleo sobre tela
30x20cm
2024
XV,
série Platibandas

MARI RA

óleo sobre tela
30x20cm
2024


Dama da noite
HENRIQUE REIS

acrílica sobre lona
90x80cm
2024



A dança
RONALD BORGES JUNIOR

alto relevo em madeira Angelim Pedra
50x80cm
2024

Indica(dor)
RONALD BORGES JUNIOR

escultura em madeira Umburana
20x5x4,5cm
2023


Amparo
MARI RA

óleo sobre tela
100x120cm
2023 

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